Em "O Tempo e o Lugar", Eduardo Escorel narra tensões que atravessam a vida de um agricultor
A idéia era partir para a luta armada. O lugar era Bananeira, no chamado Brejão Paraibano. O ano, 1988. Quem conta é Genivaldo da Silva, ex-militante do MST.Ele tinha cinco filhos pequenos na época. O líder da operação já tinha feito um discurso para seus comandados. Se alguém quisesse desistir, que fosse embora naquele momento. Mas iria embora "como um frouxo, um covarde, como um soldado que não quer defender a pátria".
Genivaldo ficou quieto. Não conseguiu romper com aquele tipo de pressão moral. Chovia sem parar. As instruções eram precisas. Todos deveriam dormir com as roupas (ensopadas) em que estavam e não largar as armas de jeito nenhum.
O frio aumentava. No escuro, Genivaldo abriu a mochila. "Que se dane": pegou roupas secas e se trocou. Às quatro da manhã, um tiroteio. Depois, a ordem de retirada.
Na correria, Genivaldo esqueceu-se de levar as armas. Só bem mais tarde se deu conta disso e voltou para o acampamento vazio. Pegou as armas e juntou-se a um grupo. Naquele momento, já não pensava na família.
Lembrou-se de Che Guevara, que teria dito "quando eu tombar pelo fuzil do meu inimigo, muitos inimigos já terão morrido pelo meu fuzil". Estimula os companheiros a atirarem; um deles chora. No fim, não disparam tiro nenhum. Reencontram-se, ilesos, com o líder. Ouvem uma dura repreensão.
"Vocês me decepcionam. Eu esperava que vocês estivessem mortos." Genivaldo sorri ao se lembrar da história. "Que raio de movimento é esse que quer me ver morto?" Acabou saindo ou sendo expulso do MST.
Hoje, ele é agricultor em Inhapi, no semi-árido de Alagoas, e tem outra terra na Bahia. Sua história é contada em "O Tempo e o Lugar", documentário de longa-metragem de Eduardo Escorel, a ser exibido no festival É Tudo Verdade, que começa hoje em São Paulo.
O filme antes sugere do que explora as tensões que atravessam a biografia desse agricultor. Com mais de 50 anos, e ainda bonitão, Genivaldo parece tranqüilo, seguro de si. Continua participando de organizações de agricultores, mas estão longe os tempos em que fazia saques a supermercados, com direito a foto nos jornais. Saiu do MST e foi expulso também do PT.
O primeiro a assinar a ata de sua expulsão do PT foi Claudemir, seu segundo filho. Critica a moderação do pai, agora aliado político de antigos adversários.
Desse tipo de alianças resultou, aliás, um ganho para a família. Outro filho de Genival é hoje secretário da Agricultura do município.
Em "O Tempo e o Lugar", Escorel mostra os silêncios de um almoço em família e registra as opiniões divergentes de seus membros, temperadas pelo afeto doméstico. Há também cenas da atuação de Genivaldo no presente: ele dirige reuniões de agricultores, trata-os com tapinhas nas costas. Ao lado de outros sindicalistas rurais, é recebido com deferência pelo governador de Alagoas, o tucano Teotonio Vilela Filho.
Genivaldo ainda respeita o MST; diz que deve quase tudo de sua formação ao movimento. Não esquece, porém, os choques do aprendizado.
Numa escola de militantes, tentaram provar-lhe que Deus não existia, e que o homem é descendente do macaco.
Foi um trauma. Ouvir que a natureza está em constante transformação, e que "o macaquinho vai se amiliardando, amiliardando até virar gente", diz Genivaldo, enlouquece qualquer um.
Não deixa de ser curioso que uma "constante transformação" tenha, entretanto, caracterizado essa história de vida. Quando Lula se autodefine como uma "metamorfose ambulante", repete-se na macropolítica aquilo que, no filme, vemos acontecer num plano local.
Seria redutor ver nisso uma confirmação do caráter "macunaímico" do povo brasileiro. Provavelmente, é o próprio país que, com um pouco de crescimento econômico, mostra-se capaz de acomodar as próprias tensões. Tornou-se lugar-comum notar que, na década de 70, enquanto parte da esquerda entrava na luta armada, o operariado urbano melhorava de vida, e a classe média comprava apartamento na praia.
Não sei dizer se as ações do MST irão conhecer esse mesmo destino.
Vendo o documentário de Eduardo Escorel, só posso concluir uma coisa (e que me desculpem o chavão de outros tempos): companheiros, o processo é muito dialético.
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