30 novembro 2007

RIGON

Ontem em Maringá encontrei o jornalista Ângelo Rigon.
Ainda se recuperando de um infarto, está bem disposto. E creio eu, muito feliz por mais esta batalha vencida.

Rigon é um camarada legal. Bom profissional, está sempre bem informado, e pelo que percebo, preserva a ética como poucos. Talvez por suas posições firmes e definidas seja incompreendido e tido como “crica”.

Um jornalista sério e comprometido apenas consigo mesmo. Eis Ângelo Rigon.

Que Deus o abençoe e lhe dê uma vida muitooooooo longa.

O BRASIL PRECISA SENTIR FOME...

Bruno Bezerra

"Da educação de seu povo dependerá o futuro de um país" Benjamin Disraeli, escritor e estadista britânico (1804-1881).

Dezembro chegando, e junto com ele chega também o espírito natalino, e junto com este, chega o florescer do lado mais humano das pessoas. Contudo, precisamos humanizar de maneira ainda mais nobre o espírito natalino, e a melhor maneira de se fazer isto, é vestindo de Papai Noel as verdadeiras riquezas que sintetizam o espírito humano... A educação, o conhecimento.

Mas para tanto é preciso também inovar, e inovar neste caso específico, significa mudança de atitude. Especialmente no espírito das campanhas de Natal.

Com o incremento do programa Bolsa Família, as camadas menos assistidas da população brasileira – principal foco das campanhas natalinas – passam a ter um melhor acesso – ou um real acesso – no quesito alimentação familiar.

Na questão dos brinquedos, o fator China, que desestruturou a industria nacional, mas por outro lado fez explodir a oferta de brinquedos a preços mínimos, com muita porcaria no meio é bem verdade, mas também com alguma coisa decente e acessível por praticamente todos.

Porém, o que observamos ainda hoje é um significativo número de campanhas natalinas – bem intencionadas... Claro! – focadas em presentear com brinquedos de baixa qualidade as crianças de regiões periféricas e presentear com alimentos básicos os adultos dessas mesmas regiões. Como se todos vivessem morrendo de fome.

Sabemos que ainda existem muitas pessoas no Brasil passando fome, e que toda e qualquer iniciativa visando amenizar ou acabar com a fome será sempre bem-vinda. Entretanto, o espírito natalino pode servir também para fazer com que as pessoas sintam novos tipos de fome.

Fome de conhecimento, fome de leitura, fome de aprendizado, fome de educação.

Ao invés distribuir apenas alimentos, por que não também conhecimento? Ao invés de distribuir apenas comida ou brinquedo, por que não também livros? Por que não aproveitar o espírito natalino para fazer do livro mais um item da cesta básica do brasileiro mais necessitado?

Só a fome de educação de qualidade pode matar de vez as muitas fomes macabras do Brasil. O Brasil precisa sentir fome de educação de qualidade.

*

E mais: o Brasil precisa sentir fome de ser Brasil.
Que o povo brasileiro sinta fome, muita fome de dignidade.
E que o orgulho de uma nação não seja subjugada a uma vontade de poucos.

P.S. - o autor do artigo é o pernambucano Bruno Bezerra, do Blog Atitude Empreendedora: muito legal! Acesse: www.brunobezerra.blogspot.com

APAGÃO

Muitos especialistas são pessimistas: o Brasil está à beira de um novo apagão.
E os sinais já estão aí: falta de gás em diversos segmentos no Rio de Janeiro e empresas reduzindo seus planos de investimento.
Diante do "pré-caos", o governo mantém os cargos mais importantes do setor energético ora vagos, ora negociados, e quando ocupados, por pessoas sem qualificação com a área.
E aí, o que fazemos?

OSMAR DIAS

O senador paranaense Osmar Dias (PDT) poderá ser o fiel da balança na votação da CPMF.
A princípio, Osmar Dias era voto certo contra o imposto. Mas agora, depois da nomeação de seu advogado, João da Graça, na delegacia do Ministério do Trabalho/PR, teme-se que o senador vote favorável.
Seria bom o senador pensar na resposta que seu eleitorado poderá dar em 2010.

COISA DE SUPLENTE

Euclides Mello "está" há 3 meses senador. É que ele é suplente do senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL).
Para marcar sua passagem pelo Senado, o senador suplente apresentou um projeto, no mínimo, curioso, quer transferir provisioriamente a capital do Brasil para o município de Marechal Deodoro, em Alagoas.
Não é um absurdo?
O senador Demóstenes Torres (DEM-GO), entrou com um projeto na Comissão de Constituição e Justiça que prevê a extinção do senador suplente.
Resta saber se a proposta será aceita. Pois, como sabemos, a escolha do suplente é de livre escolha do candidato e geralmente negociada entre as partes.
Chegar ao Senado da República sem nenhum voto: eis mais uma grande vergonha do nosso Congresso Nacional.

SÓ EM 2222

47% dos brasileiros não têm acesso ao saneamento básico.
No Rio Grande do Sul, 85% do esgoto não é tratado.
Não é assustador?
Mais assustador ainda é saber que somente em 2222, daqui a 215 anos o Brasil conseguirá resolver este problema.
Desde criança ouço dizer que o Brasil é o país do futuro. Só que este futuro nunca chega.

PA: MENOR E DOENTE VIOLENTADO NA PRISÃO

Cláudio Humberto

Um adolescente de 16 anos, com deficiência mental, foi violentado por vários presos na prisão de São Miguel do Guamá (PA), a 260km de Belém. A informação foi transmitida hoje pela presidente da OAB do Pará, Angela Sales, durante contato telefônico com o presidente nacional da entidade, Cezar Britto. Segundo Ângela Sales, a denúncia de mais um caso de exploração sexual no Pará ocorreu durante o depoimento de uma das detentas que foram transferidas de prisões do interior do Estado para Ananindeua, na região metropolitana de Belém, conforme decreto baixado esta semana pela governadora Ana Júlia Carepa (PT). Em seu relato no Centro de Recuperação Feminina, a detenta revelou que também ficou presa com vários homens mas não sofreu nenhum tipo de violência ou abuso sexual. "Vi um adolescente, com deficiência mental, sendo estuprado pelos demais presos. E, pior: um policial filmou toda a cena com o seu celular".


*

O que acontece com este país?!

DÁ PRA ACREDITAR?

"Quando eu tiver um irmão ele vai se chamar Herrar, porque Herrar é o mano."

(frase supostamente encontrada em redação)

Num país em que alunos de 5a. série não sabem ler nem escrever...
Dá desespero!

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IMAGEM É TUDO

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JABUTICABAS JURÍDICAS

VEJA

ENTREVISTA: Saulo Ramos

Um dos mais destacados juristas brasileiros critica a confusão legal do país e alerta contra a possibilidade de os acusados do mensalão saírem impunes

A minha vida é a advocacia", diz Saulo Ramos. Aos 78 anos, esse paulista de Brodowski – cidade do pintor Candido Portinari, seu amigo – participou de momentos cruciais da vida pública brasileira. Foi oficial-de-gabinete do governo de Jânio Quadros e defendeu políticos e intelectuais de esquerda nos processos abertos pela ditadura militar. No governo Sarney, serviu como consultor-geral da República e ministro da Justiça. Também foi advogado – vitorioso – do Senado no processo que garantiu a cassação dos direitos políticos de Fernando Collor de Mello, que renunciara antes do impeachment na esperança de conservar a elegibilidade. As saborosas histórias dessa longa carreira jurídica estão reunidas em Código da Vida (Planeta), livro de memórias que já teve 50 000 exemplares comercializados e está há 23 semanas na lista de mais vendidos de VEJA. Recentemente recuperado de um câncer, Ramos segue ativo, mas afastado dos tribunais e fóruns – chega a cobrar 200 000 reais por um parecer jurídico. Na entrevista a seguir, concedida em sua casa de campo em Serra Negra, São Paulo, Ramos mostra por que é uma das mentes jurídicas mais aguçadas do país.

Veja – A Constituição brasileira está para fazer vinte anos. Ela serviu bem ao Brasil neste tempo?
Ramos – Na essência, sim. Ela assegurou o estado de direito, com forte concreção dos direitos fundamentais, das liberdades individuais e públicas. Foi mais abrangente do que as constituições anteriores em muitos aspectos importantes, no processo legislativo, na criação da Advocacia-Geral da União, nas cláusulas pétreas. Mas não deixou de ser um desastre no sistema tributário. Criou condições para os entes federativos instituírem tributos de todos os tipos. Provocou outro desastre, e maior, no sistema financeiro, que acabou sendo revogado, inclusive naquela teratológica fixação de juros reais em texto constitucional. Exigiu um número excessivo de leis ordinárias – 285 – e complementares – 41 – para dar eficácia aos seus comandos e até hoje ainda depende de interpretações do Supremo Tribunal Federal.

Veja – A sociedade não acaba prejudicada por esses excessos legislativos?
Ramos – Nosso país sofre contradições enormes em matéria de leis. Há algumas excelentes, outras medíocres, discriminatórias e mal redigidas. Somente em matéria de leis tributárias tivemos, a partir de 1988, a edição de 225.600 normas federais, estaduais e municipais, isto é, 36 normas tributárias por dia, o que enlouquece contribuintes e advogados. No processo legislativo, passamos ao abuso deslavado de legislar por medidas provisórias em quase todas as matérias, sem urgência e sem relevância, como exige a Constituição. O processo legislativo tem sido violentamente deturpado, e isso desfigura a democracia, pois o Congresso não legisla corretamente, o Judiciário não tem instrumentos científicos para aplicar o direito, o povo não sente legitimidade nem segurança na ordem jurídica.

Veja – Julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal, como o da fidelidade partidária, levantaram críticas de que o Poder Judiciário estaria interferindo indevidamente no legislativo. Isso procede?
Ramos – Não é verdade. O Congresso Nacional parou de trabalhar. O que o Supremo tem feito é suprir as falhas do Congresso, interpretando o conjunto das normas constitucionais. Se o Supremo deduziu que o mandato do político eleito pertence ao partido, é porque esse é o sistema previsto na Constituição. O Supremo também chegou à conclusão de que o funcionário público, para fazer greve, precisa de uma lei que a regule. Como o Congresso nunca editou essa lei, aplicou-se supletivamente a lei que rege o direito de greve dos trabalhadores privados. Outro exemplo possível: a Constituição, nos direitos individuais, diz que ninguém pode ser compelido a fazer parte de uma associação. Nos direitos sociais, diz que ninguém pode ser obrigado a filiar-se a sindicato. Se esses dois comandos constitucionais não obrigam ninguém a se filiar a sindicato, então não pode haver cobrança obrigatória de contribuição sindical. Se amanhã alguém chegar ao Supremo, pelas vias processuais que a nossa lei admite, e argüir essa matéria, ele acaba com a contribuição, sem necessidade de lei.

Veja – A denúncia do mensalão foi quase integralmente aceita pelo STF. Mas Fernando Collor de Mello, mesmo cassado no Congresso, acabou inocentado por razões técnicas no Supremo. Não há o risco de que o mesmo se repita agora?
Ramos – A denúncia contra Collor era inepta. Atribuía a PC Farias o crime de concussão, do qual Collor seria co-autor. PC Farias jamais poderia ser denunciado por concussão porque não era funcionário público. Esse defeito técnico livrou o autor do crime, e portanto também o co-autor. A denúncia do mensalão, ao contrário, está muito bem embasada. Aponta os fatos praticados por cada um dos réus, com motivos e circunstâncias. Claro que o STF está no início, apenas. O direito de defesa assegurado pela Constituição será exercido pelas pessoas arroladas na denúncia. Mas ficou demonstrado ao país que houve o mensalão. E foi praticado com a permissão clara do governo. A história de Lula dizer que não sabe nada é uma agressão à inteligência dos brasileiros.

Veja – Não há risco de os crimes dos mensaleiros prescreverem por causa da demora do julgamento?
Ramos –
A demora é um problema para a Justiça brasileira em geral. Quando o cliente é culpado, a saída, para o advogado, é pedir provas, diligências, precatórios, ouvir uma testemunha no Rio Grande do Sul e outra no Acre, para ganhar tempo até a prescrição. No caso do mensalão, a prescrição é o maior risco. O Supremo não tem estrutura para fazer instrução probatória, ainda mais com tantos réus. E não existe apenas a prescrição técnica, jurídica: com a demora do julgamento, a opinião pública também esquece do caso, e fica mais fácil para a defesa trabalhar.

Veja – A ineficiência e a demora da Justiça são as principais causas da impunidade?
Ramos –
O problema é que a legislação brasileira parece feita só para inocentes. Os constituintes olharam para o passado, não para o futuro: fizeram vários artigos para defender os presos políticos das masmorras da ditadura. Por exemplo, tem um artigo que diz que ninguém é considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. O jornalista Pimenta Neves é um exemplo: embora seja réu confesso e já tenha sido condenado em primeira instância por assassinato, está em liberdade. Então, a culpa não é exclusiva do Judiciário. O juiz não pode julgar contra a lei.

Veja – Como se corrigem esses problemas?
Ramos – É preciso alterar a legislação toda, tanto na Constituição quanto nas leis infraconstitucionais. Primeiro, tem de mudar esse conceito da Constituição de que o sujeito é inocente até trânsito em julgado. Depois, na legislação penal, tem de estabelecer que condenado em primeira instância deve começar a cumprir a pena. Não pode apelar em liberdade.

Veja – O presidente Lula teve a oportunidade de nomear sete dos onze ministros do STF. Ele fez boas indicações?
Ramos – Na maioria, sim. Há uma minoria, uns dois ou três, que é intelectualmente mais fraca.

Veja – Quem são eles?
Ramos – É constrangedor citar nomes. Mas é só acompanhar os julgamentos do Supremo para ver quem é a minoria. Ficam brincando com o laptop. São culturalmente mais fracos.

Veja – O senhor já foi advogado do ex-deputado Ronaldo Cunha Lima, que agora renunciou para não ser julgado pelo STF. Essa foi uma manobra legítima?
Ramos – Casos como esse são jabuticabas jurídicas: só existem no Brasil. Fui advogado de Ronaldo Cunha Lima quando começou o processo. Consegui que ele fosse solto com um pedido de habeas corpus – o primeiro no Brasil feito por fax. Depois, ele prosseguiu o processo com outros advogados. A renúncia ao mandato teria de sustar o processo contra ele no Supremo, porque ele deixava de ter foro privilegiado. O ministro Joaquim Barbosa, sem a necessária serenidade de magistrado, entendeu tratar-se de um desaforo. É isso mesmo: desaforamento da ação penal. É um legítimo direito de defesa do réu. Não acredito que o Supremo prosseguirá no julgamento de um cidadão comum, não mais deputado.

Veja – Nas suas memórias, o senhor conta que foi convidado a ser ministro da Justiça e advogado do governo Collor, com pagamento de honorários. Como foi isso?
Ramos – Foi quando começaram a pipocar os escândalos com PC Farias. Um alto membro do governo, meu conhecido, me convidou, em nome do presidente, para ser ministro da Justiça, pagando honorários de 10 milhões de dólares. Já me censuraram por não ter revelado isso na época. Ora, advogado não sai por aí gritando "fui consultado por fulano ou sicrano". Resolvi contar agora no meu livro porque é um fato único na história do Brasil. Um ministro da Justiça é um auxiliar do presidente da República. Ele pode assessorar como advogado em casos pessoais do presidente da República? Ele é auxiliar para tudo? São perguntas que eu mesmo me fiz então.

Veja – E um ministro pode agir como advogado?
Ramos – A minha resposta é negativa, tanto que não aceitei o convite do Collor.

Veja – Mas o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos concebeu as teses jurídicas para defender o governo Lula no caso do mensalão.
Ramos – Ele agiu como advogado, e não posso censurar um colega meu, sobretudo quando é bom advogado. Márcio criou a tese do caixa dois, que melhorou um pouco o julgamento popular sobre o governo. Também criou a tese do "Lula não sabia de nada". É sempre melhor não saber nada do que dar explicação. Agora, há um gesto simbólico do Márcio que pouca gente entendeu. Ele saiu do governo. É um gesto silencioso, mas muito significativo da discordância.

Veja – O senhor é muito crítico da atuação de Fernando Henrique Cardoso durante a Constituinte. Por quê?
Ramos – Fernando Henrique queria implantar o parlamentarismo em um momento em que não era legítimo sob o ponto de vista do direito. O povo já tinha decidido, no plebiscito de 1963, que o sistema era presidencialista. Isso só poderia ser mudado, segundo toda a técnica do direito constitucional, através de outro plebiscito. Para aprovar o parlamentarismo na Assembléia Constituinte, Fernando Henrique criou uma Comissão de Sistematização com poderes especiais. Para derrubar o que a comissão aprovava por maioria de 47 votos, eram necessários 280 votos do plenário. Os constituintes da comissão eram de primeira classe, e os do plenário, de segunda. Eu denunciei isso. Mostramos que era uma fraude.

Veja – Como presidente, Fernando Henrique não andou sempre dentro dos marcos institucionais?
Ramos – Sim, andou. Mas ele, por exemplo, era a favor do tabelamento de juros pela Constituição. Ele e o Fernando Gasparian lutaram muito para botar o limite de 12% de juros na Constituição. Isso ia quebrar o país, com aquela inflação galopante. Eu dei um parecer, na Consultoria-Geral da República, de que aquele artigo precisava de lei para ter eficácia. Fernando Henrique veio brigar comigo. "Você pensa que suspende a Constituição com parecer jurídico?" Não só pensava, como suspendi. O Supremo pensou igual a mim e manteve a suspensão. Na Presidência, quem mais praticou juros altos foi o Fernando Henrique. Ele tem essas posições dúbias. Como ele é inteligente, digo que isso é perigoso.

Veja – O senhor também qualificaria Lula como perigoso?
Ramos – O perigo do Lula é a tendência permanente à demagogia de palanque. E o risco está no demagogo se endeusar, achar que pode tudo. É o caso do Hugo Chávez, na Venezuela.

Veja – Se Lula tentar, consegue aprovar uma emenda constitucional para obter um terceiro mandato?
Ramos – Eu acredito que nesse ponto a sociedade vai reagir. A meninada vai pintar a cara de verde e amarelo de novo. Seria o fim do estado de direito no Brasil.

Veja – O senhor foi ministro da Justiça no governo de José Sarney e é até hoje muito próximo dele. O que pensa ao vê-lo na base de sustentação do governo Lula?
Ramos – Sarney prestou ao Brasil um serviço de grande relevância quando assumiu a Presidência da República como vice de Tancredo Neves. Os militares não se conformavam com a vitória do Tancredo e queriam botar os tanques na rua de novo. Sarney e Leônidas Pires Gonçalves, o ministro do Exército nomeado por Tancredo, souberam conduzir isso com muita habilidade. Sarney deveria ter parado no momento de glória. Mas ele continuou na política, e a política tem dessas coisas. A campanha que ele faz para o Senado, no Amapá, é no mato, nos mangues, regiões inóspitas. Ele toma cachaça em botequim e anda de canoa em rios e igarapés. Para quem está acostumado com isso, não custa nada entrar na canoa furada que é o governo Lula.

Veja – O senhor atuou, em 1979, na proibição de O Rei e Eu, livro em que Nichollas Mariano, mordomo de Roberto Carlos, fazia revelações sobre a intimidade do cantor. A recente proibição de Roberto Carlos em Detalhes, biografia de Paulo Cesar de Araújo, é um caso comparável?
Ramos – Os dois casos são muito diferentes. No tempo de O Rei e Eu, estávamos sob a Constituição de 1967, que não era tão liberal quanto a atual. E o livro do mordomo não tem um caso que seja verdade. Era tudo mentira. Foi uma briga judicial grande para apreender e queimar o livro antes de ele sair. Já o livro mais recente é uma biografia perfeita. Não tem um ataque moral contra o Roberto. O Roberto me consultou e eu o aconselhei a não tomar nenhuma providência. Eu recusei a causa, e ele procurou outros advogados. Agora, não houve, nesse caso, condenação, mas um acordo. A Planeta, que é a minha editora, capitulou diante do desejo do Roberto.

COMO COMBATER A ARROGÂNCIA

Stephen Kanitz

"Precisamos de pessoas que usem sua privilegiada inteligência para ouvir aqueles que as cercam, e não para enunciar as teorias que aprenderam na Sorbonne, Harvard ou Yale"

Muitos leitores perguntaram ao longo deste mês qual era a minha agenda oculta. Meus textos são normalmente transparentes, sou pró-família, pró-futura geração, pró-eficiência, pró-solidariedade humana e responsabilidade social. Mas, como todo escritor, tenho também uma agenda mais ou menos oculta. Sempre que posso dou uma alfinetada nas pessoas e nos profissionais arrogantes e prepotentes. É a reclamação mais freqüente de quem já discutiu com esses tecnocratas. Uma vez no governo, parece que ninguém mais ouve. Eles confundem ser donos do poder com ser donos da verdade. Fora do governo, continuam não ouvindo e, quando escrevem em revistas e jornais, é sempre o mesmo artigo: "Juro que eu nunca errei". Toda nossa educação "superior" é voltada para falar coisas "certas". Você só entra na faculdade se tiver as respostas "certas". Você só passa de ano se estiver "certo".

Aqueles com mestrado e Ph.D. acham equivocadamente que foram ungidos pela certeza infalível. Nosso sistema de ensino valoriza mais a certeza do que a dúvida. Valoriza mais os arrogantes do que os cientificamente humildes. É fácil identificar essas pessoas, elas jamais colocam seus e-mails ou endereços nos artigos e livros que escrevem. Para quê, se vocês, leitores, nada têm a contribuir? Elas nunca leram Karl Popper a mostrar que não existem verdades absolutas, somente hipóteses ainda não refutadas por alguém. Pessoalmente, não leio artigos de quem omite seu endereço ou e-mail. É perda de tempo. Se elas não ouvem ninguém, por que eu deveria ouvi-las ou lê-las? Todos nós deveríamos solenemente ignorá-las, até elas se tornarem mais humildes e menos arrogantes. Como não divulgam seus e-mails, ninguém contesta a prepotência de certas coisas que escrevem, o que aumenta ainda mais a arrogância dessas pessoas.

O ensino inglês e o americano privilegiam o feedback, termo que ainda não criamos em nossa língua – a obrigação de reagir à arrogância e à prepotência dos outros. Alguém precisa traduzir bullshit, que é dito na lata, sempre que alguém fala uma grande asneira. Recentemente, cinco famosos economistas brasileiros escreveram artigos diferentes, repetindo uma insolente frase de Keynes, afirmando que todos os empresários são "imbuídos de espírito animal". Se esse insulto fosse usado para caracterizar mulheres, todos estariam hoje execrados ou banidos. "A proverbial arrogância de Larry Summers", escreveu na semana passada Claudio de Moura e Castro, "lhe custou a presidência de Harvard." Lá, os arrogantes são banidos, mas aqui ninguém nem sequer os contesta. Especialmente quando atacam o inimigo público número 1 deste país, o empreendedor e o pequeno empresário.

Minha mãe era inglesa, e dela aprendi a sempre dizer o que penso das pessoas com quem convivo, o que me causa enormes problemas sociais. Quantas vezes já fui repreendido por falar o que penso delas? "Não se faz isso no Brasil, você magoa as pessoas." Existe uma cordialidade brasileira que supõe que preferimos nunca ser corrigidos de nossa ignorância por amigos e parentes, e continuar ignorantes para sempre. Constantemente recebo e-mails elogiando minha "coragem", quando, para mim, dizer a verdade era uma obrigação de cidadania, um ato de amor, e não de discórdia.

O que me convenceu a mudar e até a mentir polidamente foi uma frase que espelha bem nossa cultura: "Você prefere ter sempre a razão ou prefere ter sempre amigos?". Nem passa pela nossa cabeça que é possível criar uma sociedade em que se possa ter ambos. Meu único consolo é que os arrogantes e prepotentes deste país, pelo jeito, não têm amigos. Amigos que tenham a coragem de dizer a verdade, em vez dos puxa-sacos e acólitos que os rodeiam. Para melhorar este país, precisamos de pessoas que usem sua privilegiada inteligência para ouvir aqueles que as cercam, e não para enunciar as teorias que aprenderam na Sorbonne, Harvard ou Yale. Se você conhece um arrogante e prepotente, volte a ser seu amigo. Diga simplesmente o que você pensa, sem medo da inevitável retaliação. Um dia ele vai lhe agradecer.

29 novembro 2007

COMPORTAMENTO X NOTAS

Folha Equilíbrio

Estudo constata que crianças bagunceiras podem se sair tão bem na escola quanto as bem comportadas; mas, para pedagogos, a escola também deve ensinar convivência social

Camila Duarte Silva Corbo nunca foi exatamente um exemplo de aluna bem comportada. Agitada, batia nos colegas de turma, era indisciplinada e, se os professores lhe pedissem algo no qual ela não via grande utilidade, simplesmente não obedecia. O exato oposto de sua irmã, Paula, considerada por todos na escola uma criança muito tranqüila e sociável.
A expectativa de Cristina Duarte Silva, mãe delas, seguia a crença comum: crianças comportadas vão bem na escola, enquanto as bagunceiras ficam de recuperação. A surpresa veio no boletim: Camila, a agitada, sempre tirava notas altas. Já Paula repetiu de ano duas vezes e sempre precisou de professor particular - ainda mais quando o assunto era matemática. "Até hoje não sei onde vou usar uma equação na minha vida", brinca Paula, atualmente com 20 anos e estudante de moda. "Eu sempre gostei muito de estudar, principalmente matemática e ciências", conta Camila, 23, formada em educação física. Exceção à regra? Não exatamente. Um estudo recém divulgado nos EUA defende que, ao contrário do que se pensava, o comportamento não é um fator determinante para o sucesso acadêmico.
Os pesquisadores avaliaram seis levantamentos envolvendo estudantes dos EUA, do Canadá e do Reino Unido. Na primeira fase, foram coletados dados sobre o comportamento e as habilidades das crianças quando elas estavam na pré-escola (hoje chamada de educação infantil). Anos depois, quando as mesmas crianças estavam no ensino fundamental, os dados iniciais foram comparados com as notas que elas alcançavam em testes e com relatórios de professores.
A análise revelou que os melhores alunos tinham uma característica em comum: fossem briguentos ou calmos, eles geralmente possuíam, desde pequenos, boas noções de matemática. Em segundo lugar, estava a noção de linguagem - quanto mais a criança dominava aspectos relacionados a leitura, escrita e vocabulário no ensino infantil, melhores eram suas notas nos anos seguintes. Dentre os aspectos comportamentais, o único fator relevante para a aprendizagem foi a capacidade ou não de manter a atenção, segundo a pesquisa. Outras questões, como agressividade, desobediência, ansiedade e impulsividade, não foram relacionadas ao desempenho escolar das crianças nas fases posteriores.


[...] O único fator comportamental relevante para a aprendizagem é a concentração, diz o estudo


O estudo contraria outras pesquisas já feitas nas áreas de desenvolvimento infantil que associam o mau comportamento a um pior rendimento escolar. No ano passado, por exemplo, um estudo publicado no "Journal of Educational Psychology" também acompanhou alunos do ensino infantil à quinta série e constatou que crianças que não se dão bem com as outras deixam de se envolver nas atividades na sala de aula e aprendem menos.
"Uma associação simples sugere que crianças que não se adaptam tendem a aprender menos", disse à Folha Greg Duncan, professor da Universidade de Norhtwestern (EUA) e coordenador da nova pesquisa. "Mas essa relação entre o comportamento na pré-escola e a aprendizagem nos anos seguintes desaparece quando levamos em conta o conhecimento [de noções de matemática e linguagem] que as crianças já tinham." Maria Irene Maluf, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia, confirma o resultado da pesquisa de Duncan: mau comportamento nem sempre significa notas baixas e bom comportamento não garante sucesso escolar.
Ainda assim, ela critica aspectos do trabalho, em especial o fato de o sucesso acadêmico ser medido basicamente pela aquisição de conteúdo. "O papel da escola mudou", afirma Maluf. "Antes, a função era informar. O professor passava as informações como uma enciclopédia. Hoje, o professor é um mediador da aprendizagem, incluindo a aprendizagem social. É preciso formar o cidadão - uma pessoa capaz, autônoma e consciente. Esse trabalho começa na pré-escola, pois ninguém vai formar um cidadão aos 18 anos de idade."
"O principal objetivo da educação infantil não é o conteúdo acadêmico. O aluno não está preparado para assimilar conceitos. A criança dessa faixa etária tem noções de tempo, de números, mas a assimilação de conceitos só vai acontecer aos sete anos", afirma Fernanda Gimenes, coordenadora pedagógica da educação infantil e do primeiro ano do ensino fundamental do colégio Pueri Domus em Barueri (SP). Para ela, a educação infantil tem efeitos positivos na vida escolar do aluno quando o trabalho realizado é integral, contemplando o desenvolvimento tanto de aspectos psicológicos e afetivos quanto das habilidades cognitivas das crianças.
Para Maluf, o acompanhamento adequado nessa fase é fundamental porque é até os seis anos que se formam as principais características da personalidade da criança. "Se não mexer enquanto ela é novinha, depois fica muito mais complicado. Se ela continuar agressiva no ensino fundamental, por exemplo, o professor tenderá a mandá-la para fora da sala de aula - o que é errado- e ela aprenderá menos." Em sua pesquisa, o norte-americano Greg Duncan observou uma continuidade de problemas sociais e emocionais nas crianças que já apresentavam esse perfil aos cinco ou seis anos. "Mas isso é variável. Alguns problemas foram persistentes, mas outros, transitórios", disse.

É normal?
É essa variação que aflige muitos pais: como saber se a agressividade ou a ansiedade do filho é resultado de uma situação temporária ou sinal de um problema mais sério?
Especialistas afirmam que o primeiro passo para responder a essa questão é avaliar o próprio ambiente familiar. "Os pais devem se perguntar: eu educo bem, dou limites? Cerca de 90% dos problemas de comportamento de pré-escolares se devem à falta de educação por parte dos pais e só 10% estão relacionados a patologias neuropsiquiátricas", diz Maluf.
Alunos que não respeitam os colegas, por exemplo, podem estar apenas repetindo atitudes que vêem em casa, diz ela. Outro agravante é a superproteção: crianças que são protegidas em excesso pelos pais podem ter mais dificuldade para lidar com frustrações e reagir pior quando suas necessidades não forem atendidas.
Além disso, a agitação pode ser uma reação a fatores estressantes. "Mudanças bruscas, como a separação dos pais, e excesso de estímulos, como cursos de inglês, de balé etc., podem deixar a criança agitada. Nesse caso, seu comportamento é uma reação a uma situação ruim", afirma Luiz Renato Rodrigues Carneiro, professor de neurociência das universidades Ibirapuera e Mackenzie, em São Paulo.
Segundo ele, também é fundamental observar aspectos como a freqüência e o local em que os problemas ocorrem. A criança bateu só uma vez em um coleguinha ou isso se repete todos os dias? O mau comportamento ocorre em todos os locais ou em um ambiente específico, como a escola?
De acordo com as respostas a essas perguntas, pode ser indicado procurar um profissional especializado para fazer um diagnóstico da criança.
Entre as patologias, uma das causas mais comuns de problemas de comportamento é o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), que, estima-se, atinge 5% das crianças em idade escolar.

TDAH
Iannis Castilho Farjo, 13, está nesse grupo. Há cinco anos, ele começou a se desinteressar pelo ambiente escolar. Na época, isso foi associado à mudança de colégio. Como o problema persistiu nos anos seguintes, a pediatra e os professores do menino sugeriram que sua família o levasse a um neurologista, onde ele foi diagnosticado com o transtorno.
"Foi uma surpresa", conta a professora Kathia Castilho, 46, mãe de Iannis. Afinal, o menino não era extremamente agitado. O que ela não sabia é que nem toda criança com TDAH apresenta o "quadro completo": algumas podem ter déficit de atenção e não serem hiperativas e outras, embora sejam muitas agitadas, podem não ter problemas de concentração.
Para aumentar sua capacidade de atenção, Iannis começou a fazer atividades como tocar violão e praticar kung fu. O processo foi acompanhado na escola por meio de medidas especiais, como a possibilidade de as provas serem acompanhadas de perto por um professor, que verifica se o aluno prestou atenção na pergunta e entendeu o que está sendo pedido.
Com o tempo, Iannis recuperou as boas notas - vai bem principalmente em geografia. A disciplina favorita? "Educação física", brinca ele.
Embora o TDAH não seja um transtorno de aprendizagem, até 30% dos casos costumam ser acompanhados por problemas desse tipo, como a dislexia, afirma Fabio Barbirato, chefe de psiquiatria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica).
Além disso, diz, pesquisas têm observado cada vez mais a ocorrência do TDAH com outros problemas, como depressão e transtorno bipolar. O ideal, afirma, é que qualquer transtorno seja identificado o antes possível, já que isso facilita o tratamento.

O MUNDO PELA JANELA

Rosely Sayão

[...] É DO CARRO QUE AS CRIANÇAS VÊEM AS IMAGENS DO ESPAÇO QUE É - OU DEVERIA SER - DE TODOS

Vivemos em uma sociedade dominada pela imagem. Gastamos muito tempo assistindo, passivamente, a imagens que "criam" um outro mundo. Quem não conhece a "Família Doriana"? A questão é que temos identificado tais imagens com a realidade. Substituímos a aprendizagem da vida como ela é pelas narrativas que as imagens oferecidas pela mídia constroem. Uma pergunta faz sentido: quais imagens do mundo público são acessíveis às crianças?
Vamos considerar que os filhos da classe média não transitam mais pelos espaços públicos: as ruas são só trajetos que separam a casa da escola, do clube, do shopping etc. É do carro que as crianças vêem as imagens do espaço que é - ou deveria ser - de todos.
Isso significa que os limites da visão que elas têm são determinados pelas janelas do carro -limites, aliás, semelhantes à tela de um aparelho televisor. Deve ser assim que as crianças vêem o mundo: como espectadores que, à moda da TV interativa, de vez em quando interferem na programação pressionando um botão ou como personagens de tramas e enredos. Com a nova lei que cria regras para o uso de insulfilm nos carros, a visibilidade permitida para os vidros traseiros passou a ser de 28%. Ou seja: a partir de agora, a visão de mundo que as crianças terão será, além de retangular, sombria.
Não parece cena de filme? De modo parecido ao uso dos efeitos especiais, um mundo escuro e cheio de sombras se ilumina quando essas crianças entram em cena. É verdade: é apenas nos locais que freqüentam que elas enxergam o mundo diretamente, sem uma película que modifique sua luminosidade. Isso permite que elas criem a ilusão de que só seus ambientes são seguros e acolhedores. A visão do mundo público que essas crianças podem produzir é bem compatível com a de uma imagem ameaçadora.
Assim, o outro, o estranho que transita por esse espaço e que nunca está no mesmo local que elas, transforma-se em um personagem do outro lado da trama. O mundo bom é o que elas vivem. O mundo ruim é o que elas vêem.
Ao mesmo tempo, ver o mundo pela janela do carro permite que a criança o associe à idéia de videogame. A mãe de um garoto com menos de seis anos contou um fato que ilustra bem essa possibilidade. Ao buscar o filho na escola, junto a outros colegas, teve de frear bruscamente para não atropelar uma senhora idosa que atravessou a rua sem perceber o carro.
A reação das crianças deixou essa mãe perplexa: disseram como seria legal se a velhinha fosse atropelada. Por quê? Provavelmente porque, para as crianças, o fato teve mais relação com desenhos animados - em que os personagens passam por pequenas tragédias e continuam vivos- e com videogames - em que a atenção é focada na ação de destruir os obstáculos para ganhar o jogo - do que com a vida pública.
Imagens que permitem a construção de uma visão distorcida do outro, do mundo público e da realidade é o que temos ofertado aos mais novos. O que resultará disso?

*

Isto é muito sério.

ILHAS DESCONHECIDAS

CONTARDO CALLIGARIS

O amor e a viagem nos fazem descobrir que há algo, em nós, que não conhecíamos até então

Quando era criança, um senhor canadense, Mr. Evans, foi contratado por meus pais para "treinar" meu inglês. O método de Mr. Evans consistia em narrar grandes eventos da História (com H maiúsculo) como se ele tivesse sido uma testemunha ocular. Conseqüência: há detalhes íntimos de várias cenas famosas que não sei mais se são fatos ou fantasias de Mr. Evans.
Uma fonte de inspiração de Mr. Evans era a expedição de Lewis e Clark, que, entre 1804 e 1806, abriu o caminho do Oeste americano. Segundo Mr. Evans, em 7 de abril de 1805, deixando Fort Mandan para se aventurar no território desconhecido das grandes planícies, Lewis, pensativo, teria dito a George Gibson (o melhor atirador da expedição): "New land, George" (uma nova terra, George).
Nunca pude confirmar a veracidade da dita conversa. Mas essa frase, aparentemente trivial, foi incorporada no meu léxico familiar. A cada vez que, numa viagem de férias, saíamos do país, meu irmão e eu não parávamos de repetir: "New land, George". Ainda hoje, quando chego num lugar desconhecido, penso em Lewis e Gibson.
Mais tarde, meu irmão e eu passamos a usar a mesma expressão quando - numa festa, por exemplo - avistávamos mulheres que despertavam nosso interesse. Um dos dois, invariavelmente, levantava a mão espalmada, como se quisesse proteger os olhos do sol, e dizia: "New land, George".
Na literatura, não é raro que um corpo amado e desejado seja comparado à paisagem de terras incógnitas. John Donne, num de seus mais lindos poemas (do século 17), chamou sua amada de "minha América, minha terra recém-descoberta". De fato, há mesmo uma relação entre o amor e a verdadeira viagem. Vamos ver qual.
De vez em quando, tenho vontade de viajar. O que chamo de viajar não tem muito a ver com viagens de férias. Tampouco significa necessariamente desbravar terras virgens.
Encontrei a melhor definição do que é viajar numa maravilhosa e breve fábula de José Saramago, que acaba de ser publicada, "O Conto da Ilha Desconhecida" (Companhia das Letras). O protagonista explica assim seu desejo: "Quero encontrar a ilha desconhecida. Quero saber quem eu sou quando nela estiver".
Viajar é isto: deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós, algo que não conhecíamos até então. Sem estragar o prazer dos leitores, só direi que, no fim da fábula de Saramago, talvez o protagonista não encontre sua ilha, mas ele encontra uma mulher. A moral da história é incerta, entre duas leituras opostas.
Primeira leitura: quem casa não viaja (a não ser de férias); casar-se é desistir de viajar. É o que pensam, com freqüência, homens e mulheres casados. E é também o que os leva, às vezes, a se separarem. Quando achamos que o outro nos impede de viajar, ou seja, que ele nos priva da aventura de descobrir o que poderia haver de diferente em nós, o casal se torna nosso inimigo. Claro, na maioria dos casos, acusamos o casal de uma inércia que é só nossa.
Exemplo: anos atrás, na França, um amigo se interessava pelas pessoas que desaparecem sem razão aparente e refazem sua vida alhures, sob outro nome, como se tivessem sido vítimas de uma amnésia repentina. Em todos os casos em que meu amigo conseguira entrevistar esses "desaparecidos", os mesmos constatavam que, depois de seu sumiço, em poucos anos, eles tinham reconstruído uma situação de vida parecida com aquela que tinha motivado sua fuga.
Segunda leitura: o protagonista descobre que a mulher ao seu lado é a própria ilha desconhecida que ele procurava e que a verdadeira viagem é o encontro com um outro amado. Faz todo sentido, pois o amor e a viagem, em princípio, têm isto em comum: ambos nos fazem descobrir em nós algo que não estava lá antes.
O outro amado nos transforma. Tanto quanto a chegada numa terra incógnita, ele nos revela algo inesperado em nós.
Por isso, aliás, o viajante e o amante podem esbarrar em problemas análogos: às vezes, ao sermos transformados pela viagem ou pelo amor, não gostamos do que encontramos, não gostamos dos efeitos em nós do amor ou da viagem. Essa é, em geral, a única razão séria para se separar ou para voltar da viagem.
Moral dessa coluna (e talvez da fábula de Saramago): os outros não são nenhum inferno, são uma viagem. Agora, para amar, como para viajar, é preciso ter determinação e coragem.

FRASE

"Uma coisa é ser amado. Outra, é ser 'o' amado."
Júlio César

CHARGE

CHÁVEZ E AS FARC

ELIANE CANTANHÊDE

Com as crises internas na Venezuela e na Bolívia, marcadas por grandes manifestações e até mortes, talvez estejamos subestimando uma ameaça bem mais grave: o recrudescimento do confronto entre a Venezuela e a Colômbia. Crises internas são mau sinal. Crises entre países são piores.
O Planalto e o Itamaraty insistem em dizer que está tudo bem e em achar que Hugo Chávez cutuca o colombiano Álvaro Uribe só para se fortalecer internamente. Mas setores militares e de inteligência não estão tão tranqüilos assim. A beligerância entre Venezuela e Colômbia tem um peso geopolítico.
Os dois são os antípodas da América do Sul. Chávez, com seu "socialismo bolivariano", é adversário frontal dos EUA e de Bush. Uribe, fiel à cartilha neoliberal, é o mais confiável aliado de Washington. E ambos se alimentam das disputas históricas entre seus países.
Pode ser paranóia de milico, mas algumas boas patentes têm certeza de que Chávez não tentou de fato mediar uma negociação para Uribe soltar 500 presos das Farc em troca de 45 seqüestrados do grupo guerrilheiro. Teria só arranjado um pretexto para meter a mão - e os pés - na política interna colombiana. Não, claro, a favor de Uribe.
O temor é que Chávez patrocine um candidato de esquerda, com apoio das Farc, para disputar as eleições de 2010 contra Uribe e, portanto, contra os EUA. A soma do petróleo venezuelano com as drogas colombianas seria bilionária. E quem gostaria de um governo das Farc dentro da América do Sul?
Apesar dos tanques, rifles, aviões e submarinos nucleares russos de Chávez, o governo brasileiro acha que ele não chegaria a tanto, não se meteria a besta com os EUA. Mas Chávez atuou abertamente nas eleições do Peru, da Bolívia e do Equador, pelo menos, e já ameaçou intervir caso derrubem Morales.
Então, é como as bruxas: ninguém crê, mas que ele pode, lá isso pode.

EXALTAÇÃO DA MEDIOCRIDADE

CLÓVIS ROSSI

Fernando Haddad, o ministro da Educação, telefona para dizer que jamais afirmou que "nunca" a escola pública será tão boa quanto a particular.
O que ele disse é que, "enquanto a escola pública não se qualificar", quem pode pagar põe o filho na escola privada, que acaba tendo melhores resultados.
Feita a correção, tenho que repetir o que já disse a ele e ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em breve diálogo trilateral em Londres: está levando tempo demais para "qualificar" a escola pública. Na verdade, requalificar, porque sou filho da escola pública e, no meu tempo, a excelência era dela, não do ensino privado.
Por falar nisso, o caminho para a "qualificação" está longe de ser o insinuado pelo prefeito Gilberto Kassab, qual seja, dar um prêmio aos professores que não faltem ou faltem menos. Não é sério premiar quem apenas cumpre a sua obrigação primária que é a de comparecer ao local de trabalho.
Se os professores faltam porque o salário e as condições de trabalho são inadequadas, que se corrijam as inadequações. E se puna quem não cumpre sua obrigação.
O educador Tião Rocha, empreendedor social 2007, diz que a escola dos sonhos dele, que deveria ser o sonho de todos, é a que faz o aluno desejar freqüentá-la também aos sábados e domingos.
Premiar professores que não querem freqüentá-la com assiduidade nem de segunda a sexta é premiar a mediocridade.
Por falar em mediocridade, os torcedores do América de Natal deveriam considerar-se "abençoados por Deus". É verdade que ficaram em 20º lugar entre os 20 clubes da elite do futebol brasileiro.
Mas o Brasil, no IDH da ONU, ficou em 70º entre os 70 países da elite e, mesmo assim, o presidente Lula se acha abençoado por Deus.
Nunca antes neste país se fez tamanha exaltação da mediocridade.

SEM RETROCESSO

Editorial da Folha de S. Paulo

A nona rodada de licitação de campos de petróleo e gás sofreu o impacto da retirada de 41 blocos do leilão, logo após a confirmação da jazida de Tupi. Grandes conglomerados multinacionais não se interessaram pelo leilão, marcado pela agressividade do grupo nacional emergente OGX.
É precipitado, no entanto, avançar conclusões acerca de uma suposta perda de atratividade do Brasil, por conta de incertezas regulatórias, a partir do resultado do pregão -que arrecadou R$ 2,1 bilhões. O mais provável é que o interesse de grandes grupos mundiais de explorar petróleo aqui, que cresceu após a notícia de Tupi, continue alto.
O governo foi prudente ao suspender o leilão dos lotes, após uma descoberta capaz de mudar o status do país na economia do petróleo - e que diminui muito o risco de exploração na nova província ultraprofunda. Mas, como a gestão Lula tem dificuldades de produzir duas atitudes acertadas em seqüência, autoridades logo começaram a falar em mudança na Lei do Petróleo e a defender privilégios para a Petrobras.
Melhor que tenham sido palavras ao vento, provindas de ideólogos diletantes que Lula teima em abrigar nas agências reguladoras. O que interessa nesse megacampo é que as suas receitas, ao que parece extraordinárias, produzam uma contribuição também extraordinária ao país. Tal objetivo pode ser atingido com alterações apenas incrementais no modelo exploratório vigente, com foco na tributação.
O petróleo é um recurso finito e cada vez mais estratégico. As nações exportadoras conscientes dessa dupla característica investem grande parte das receitas com o combustível vislumbrando uma realidade futura em que as suas jazidas estarão exauridas. O Brasil deveria seguir esse exemplo, mas sem recair no estatismo populista.

INÉRCIA ESTATÍSTICA

Folha de S. Paulo

Indicadores como o IDH avançam no ritmo ditado por décadas, e não pelos governos; falta cuidar do saneamento básico

A estatística surgiu associada com os negócios de Estado, como sugere sua raiz etimológica, no século 18. Foi no 20, porém, que ela se tornou ferramenta indispensável para revelar tendências profundas da organização social, que não se perturbam com oscilações conjunturais. Tal é a razão de indicadores como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano): o que importa é a série histórica, e não o último dado.
Basta essa reflexão para desqualificar muito da festividade em torno da notícia de que o Brasil entrou para o grupo dos países com IDH alto, ao alcançar a marca de 0,800 em 2005 (o ponto máximo da escala é 1). A nação que mais se aproximou disso foi a Islândia, com 0,968. Há outros 68 países entre Islândia e Brasil, último entre os melhores (por ter cravado a "nota de corte" do primeiro pelotão). Sete deles são da América Latina. O pior dos piores, na 177ª posição, é Serra Leoa, com um IDH de 0,336.
Outra razão para não comemorar o que não deve ser comemorado, no Brasil, está no avanço de meros 11 milésimos em cinco anos (em 2000, o escore nacional havia sido 0,789). Como mostrou o repórter Antônio Gois nesta Folha, é o mais baixo progresso qüinqüenal do país (1,4%) desde 1975, quando o IDH brasileiro andava em 0,649. De 1995 a 2000, a progressão fora de 4,8%.
Comparações ano a ano são injustificadas, diz o Programa da ONU para o Desenvolvimento (Pnud), autor do relatório do IDH. Variações no índice ou mudanças de classificação nesse horizonte temporal podem resultar de modificações na metodologia, e não de fenômenos reais.
Foi o caso da alta na expectativa de vida no Brasil, que para o IDH avançou de 70,8 a 71,7 anos. Em verdade, houve uma revisão de critérios entre 2004 e 2005. O acréscimo real, diante disso, seria de apenas 0,2 ano -e não de 0,9-, indicando melhora mais modesta na saúde.
Os componentes que mais ajudaram o Brasil no IDH foram o PIB per capita pelo critério de paridade de poder de compra (que passou de US$ 8.195 a US$ 8.402) e a taxa de matrícula no ensino fundamental, médio e superior (de 85,7% a 87,5%). Nestes dois casos, a estatística mascara as questões principais.
O PIB per capita nada diz sobre a ainda péssima distribuição de renda no país. A taxa de matrícula oculta o grave problema da qualidade. Com algum otimismo, ao menos se pode dizer que ambas as questões se tornaram objeto de políticas públicas mais focalizadas, como os de renda mínima e o PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação).
Pior é a situação do saneamento básico, crucial para a saúde pública. Outro relatório, da Fundação Getúlio Vargas, indica que a cobertura da rede de esgoto progrediu mísero 1,59% ao ano de 1992 a 2006. O governo Lula, que tanta atenção dá a diminutas variações estatísticas, tem aí uma boa oportunidade para realizar algo que, de fato, seria inédito na história deste país.

28 novembro 2007

PTV

MELCHIADES FILHO

A oposição não vai perder a oportunidade de carimbar a nova rede de televisão como uma emissora a serviço do PT. Antes de tudo, porque as ocasiões para fazer barulho têm rareado -o valerioduto mineiro pôs em xeque o discurso da ética, por exemplo. Mas, principalmente, porque a condução do projeto não tem sido mesmo marcada pelo "espírito público" de que tanto falam seus defensores.
A idéia da TV Brasil, com estréia marcada para domingo, não surgiu de compromissos firmados em campanha nem de antigas convicções. Nasceu de um ataque prosaico de irritação do presidente Lula com a cobertura na grande imprensa do escândalo dos "aloprados" do PT na reta final do primeiro turno.
Tanto que, de tão abrupta, a decisão acabou encaminhada na forma de (mais uma...) medida provisória, sem estender aos parlamentares o debate para qual o governo havia antes convidado somente especialistas e puxa-sacos de plantão.
Pior 1: a relatoria do texto foi entregue a um deputado petista. Pior 2: na hora em que outros partidos esboçavam colaboração, por meio de emendas, o Planalto travou a tramitação do decreto - e de todo o trabalho legislativo - até que seja selado o destino da CPMF.
Enquanto isso não acontece, a medida provisória permitiu à Presidência nomear o conselho que deverá zelar pela independência da TV. Não por acaso, a montagem obedeceu ao conceito Ipea de pluralismo: plural só no número de contratados.
Por fim, há o modelo de negócio. Ainda que o governo prometa repasses automáticos, o fato é que a emissora ficará a reboque de verbas controladas pelo presidente (Orçamento e patrocínio de estatais).
Sem ouvir o Congresso, dar assento a não-alinhados e tornar mais evidente a fonte de recursos (taxar o assinante de canais a cabo, por exemplo), fica difícil sustentar essa TV como "produto e instrumento" da construção democrática.

200 CHIBATADAS

RUY CASTRO

Em Qatif, Arábia Saudita, na semana passada, uma jovem de 18 anos foi condenada a seis meses de prisão e 200 chibatadas por ter sido estuprada por sete homens. Você não leu errado. Para o tribunal saudita, a culpa foi da própria moça, por ter ido se encontrar num shopping com um homem "que não era seu parente".
Para nossa sensibilidade ocidental, uma história dessas remete a ritos medievais e inaceitáveis. Mas a desdita da garota de Qatif podia ser pior. E se ela tivesse de cumprir seus seis meses de prisão numa cela brasileira?
A sina da menor L., de 15 anos, presa durante 26 dias numa cela em Abaetetuba, 130 km de Belém, junto de 30 homens que a estupravam, provocou reações internacionais piores do que a da garota saudita - pela dimensão da barbárie, ainda maior, e porque a Justiça brasileira, a quem cabia zelar pela integridade de uma adolescente sem culpa formada, fracassou miseravelmente.
Sem falar nos agravantes cruéis. Primeiro, L. foi jogada àqueles homens pela ação de uma delegada. A Justiça paraense levou 15 dias para descobrir que a menina estava na cela, mas a juíza a quem se informou do caso não tomou medidas efetivas para tirá-la dali. Com a história definitivamente à tona, a governadora do Estado admitiu saber que aquele não era o primeiro caso do gênero no Pará - embora, pelo visto, ainda não tivesse tomado providências para impedi-los de acontecer. Por sua vez, a titular de uma teórica Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status de ministra, confessou que não sabia da existência desse problema em carceragens pelo país.
Poderiam ser homens os protagonistas dessa insensibilidade tão brasileira - geralmente são - e seria tão grave quanto. Só faltam agora condenar L. a 200 chibatadas.

FATALIDADE

CLÓVIS ROSSI

Ler o mais recente relatório sobre o desenvolvimento humano da ONU traz à memória, inexoravelmente, esta frase de Mário de Andrade: "Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade".
Ou, como prefere um contemporâneo, o economista brasileiro Flávio Comin, um dos autores do relatório de desenvolvimento humano divulgado ontem pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), é preciso ter cautela na hora de avaliar a importância da classificação do Brasil entre os países de alto desenvolvimento humano.
"O Brasil vem avançando em termos absolutos e caindo em termos relativos", diz Comin. Ou, usando uma formulação que vai se tornando lugar-comum, mas nem por isso é incorreta: "É a questão do copo meio cheio ou meio vazio. Para mim, o copo está meio vazio".
O que torna o copo ainda mais vazio é o fato de que o PNUD compra, como é a praxe, a versão oficial de que a desigualdade no Brasil está se reduzindo, o que não é fato.
O que há, conforme pesquisadores do Ipea já atestaram, é uma elevada subdeclaração dos rendimentos financeiros por parte dos mais ricos, enquanto os mais pobres declaram sua renda real, o que faz parecer que a distância caiu. Não caiu, atesta o próprio presidente do Ipea, Marcio Pochmann, em texto de julho para o jornal "Valor Econômico": "A parte da renda do conjunto dos verdadeiramente ricos afasta-se cada vez mais da condição do trabalho, para aliar-se a outras modalidades de renda, como aquelas provenientes da posse da propriedade (terra, ações, títulos financeiros, entre outras). (...)A renda dos proprietários (juros, lucros, aluguéis de imóveis) cresceu mais rapidamente que a variação da renda nacional e, por conseqüência, do próprio rendimento do trabalho".
É, pois, "tiquinho" e "fatalidade".

FAXINA

Mônica Bergamo

O deputado Frank Aguiar (PTB-SP) enviou ao Ministério do Trabalho um pedido para que a expressão "profissional de limpeza" seja incorporada à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Ele acha que a palavra "faxineiro" ganhou "conotação pejorativa" e quer dar aos trabalhadores uma outra opção na hora de ter a carteira assinada ou denominar sua profissão.


*

Ele é um cantor, o "cãozinho dos teclados"...

TIÃO ROCHA

Folha de S. Paulo

Vencedor do Prêmio Empreendedor Social 2007 desenvolve desde 1984 formas diferentes para a criança aprender brincando


"Essa escola formal não serve para educar ninguém"

"A escola formal não está só na forma. Está dentro da fôrma. O pior é quando está no formol. É um cadáver." É assim que o educador mineiro Tião Rocha, 59, vê o ensino convencional, de cujos métodos e conteúdos se afastou há mais de 20 anos para experimentar processos alternativos de educação.
À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue "maneiras diferentes e inovadoras" de educar, alfabetizar, gerar renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. "Se ninguém fez, é possível", diz.

FOLHA - Toda a sua história como educador é feita do lado de fora das escolas formais. Por quê?
TIÃO ROCHA
- Se eu tivesse um analista, isso seria um prato cheio para ele. Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos.
Logo no primeiro dia de aula, a professora leu um livro: "Era uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma rainha (...)". Eu levantei a mão e falei: "Professora, tenho uma tia que é rainha". Ela me mandou calar a boca. Depois que a interrompi duas ou três vezes, fui para a sala da diretora. A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa.
Nunca tive prazer na escola, mas sempre quis aprender. Quando fui para a faculdade, estudei história e antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era rainha do congado. Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de que, se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um reprodutor da mesma chatice.

FOLHA - E conseguiu mudar?
ROCHA
- Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos, inovava, mas, no fim, era uma experiência muito reformista. Ela começou a ser transformadora quando aconteceu o fato com o Álvaro, minha primeira grande perda [o garoto, excelente aluno, se suicidou].
Aí eu falei: "Opa! Não adianta querer que os meninos aprendam história se eu não consigo aprender a história da vida deles". Comecei a deixar de lado não só a forma mas também o conteúdo. Fui me libertando dos conteúdos cheirando a mofo e vi que estava partindo para outra coisa. Esse processo foi evoluindo na reflexão sobre o que é deixar de ser professor e virar educador. O professor ensina, o educador aprende.

FOLHA - O sr. começou seus projetos fora da escola, debaixo do pé de manga. O sr. acha que a escola formal serve para alguma coisa?
ROCHA
- Ela serve para escolarizar. Dá um determinado tipo de informação e de conhecimento que atende a um determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de uma sociedade que aceita, convive e não questiona.

FOLHA - Essa escola educa?
ROCHA - Não. Ela escolariza. Uma coisa é falar em educação, outra é falar em escolarização. A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes é escolarizada. Então, que escola é essa? Para que ela serve? Não é para educar. E essa escola continua sendo branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa.

FOLHA - O que significa ser branca?
ROCHA
- Por exemplo: eu nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os Bourbons, reis europeus.

FOLHA - E conformada?
ROCHA
- A escola não permite inovação. Ela é reprodutora da mesmice. A escola formal não está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando ela está dentro do formol. É um cadáver. O conteúdo da escola está pronto. Os meninos que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, de suas histórias, aprenderão as mesmas coisas.
Recentemente, uma menina de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse: "Tião, vou ter prova e esqueci o que é hectômetro". Eu disse a ela que ninguém precisa saber o que é isso, que não se preocupasse, isso não cairia na prova. Mas caiu. Agora, criança de nove anos tem que saber isso? Do ponto de vista da escolarização, vai tudo bem. Se está educando ou não, ninguém discute.

FOLHA - Como deveria ser a educação?
ROCHA
- Um projeto de vida, não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um emprego. Ter analfabetos não pode ser um problema econômico, é um problema ético.
A experiência que a gente vem desenvolvendo no CPCD é saber se é possível fazer educação de qualidade. Claro que é. Só que você tem que botar uma pergunta que a gente sempre faz. É o MDI: "De quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso"... O resto você completa com uma ação: educar, alfabetizar, diminuir a violência.

FOLHA - Até onde vale criar soluções?
ROCHA
- Na educação, qual é a melhor pedagogia? É aquela que leva as pessoas a aprender. Na escolarização, a melhor pedagogia é aquela que dá mais sentido para quem a aplica. O CPCD foi secretário da Educação de Araçuaí (MG). Os meninos demoravam duas horas no ônibus. Então colocamos educadores no ônibus. Toda secretaria de Educação pode fazer. É só sair da caixa.
Uma outra questão é o acesso aos livros. Eu me perguntei se os livros perderam o encantamento ou se foi a escola que não soube mantê-los encantados.
Juntei um monte de livros em baixo da árvore e mandava a meninada ler. Em volta, deixava montinhos de sucata e escrevia uma placa: música, teatro, artes plásticas, literatura. Tudo que o menino lesse, tinha que ir numa direção e fazer música, teatrinho etc. É um jogo. Ler e transformar, do seu jeito.
Eles ficavam lá a tarde inteira. Vinha gente de longe. Por que esses meninos nunca tinham entrado numa biblioteca da escola? Porque eles não tinham prazer. Quando iam ler um livro, tinham que dissecar a obra, responder a perguntas.

FOLHA - Como mexer no conteúdo do ensino? Tem um conteúdo básico?
ROCHA
- Claro. Tem que ter alguma coisa para começar. Precisa aprender os códigos de leitura, raciocinar e fazer cálculo, as quatro operações básicas. Mas não precisa saber o que é hectômetro.
Há uns 20 anos, tinha um projeto do governo para combater a doença de chagas no sertão. Iriam construir casas de cimento no lugar das de adobe.
O adobe resolve bem a questão térmica, o cimento, não. Mas os engenheiros disseram que não sabiam fazer casa de adobe de qualidade. Fiquei imaginando: eles não foram formados para fazer casas dignas para a população. Querem fazer em São Paulo e no sertão uma casa do mesmo tipo. Que lógica é essa? É a lógica do modelão.

FOLHA - O sr. é a favor de uma pedagogia específica para cada pessoa?
ROCHA
- Não. O que não pode é aprender uma única coisa, todo mundo igual, dar pesos desiguais, negar ou excluir coisas em função de critérios que são ideológicos. Mas não é "cada um faz o que quer".
É possível criar uma sociedade polivalente, diversificada? É, porque não foi feito ainda. Se ninguém fez, é possível. Isso é o que eu chamo de utopia. Utopia para mim não é um sonho impossível. É um não-feito-ainda, algo que nunca ninguém fez.
É possível aprender brincando? Vamos ver. A gente aprende fazendo. Aí eu coloco um indicador: a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário.

FOLHA - Como nasce uma nova forma de ensinar?
ROCHA
- Da dificuldade ou da pergunta. Somos movidos por uma pergunta, que vira um desafio, que vira uma encrenca. É possível educar debaixo do pé de manga? Vamos ficar pensando ou vamos aprender fazendo? O nosso verbo é o "paulofreirar", que só se conjuga no presente do indicativo: eu "paulofreiro", tu "paulofreiras" e por aí vai. Não existe "paulofreiraria", "paulofreirarei". Ação e reflexão, agora.
As respostas vão sendo testadas e viram novas metodologias, pedagogias. Assim surgiu a pedagogia da roda, um jeito de combater a evasão dos meninos.

FOLHA - Seus métodos são tão abertos a ponto de aceitar que uma criança queira aprender na escola formal? Ou você quer acabar com a escola?
ROCHA
- Eu não quero acabar com a escola. Ela é muito mais importante do que parece. Mas ela precisa ter a ousadia de experimentar. É uma lástima dar às crianças só o que a escola formal oferece. É muito pouco.
As pessoas querem tirar os meninos da rua e levar para a escola. Por que, em vez de tirar da rua, não mudamos a rua? Lugar de criança é na escola, na rua, em todos os espaços. Todos os espaços podem ser de aprendizado. Há experiências de cidades educativas muito legais.

FOLHA - Como é sua relação com os governos?
ROCHA
- Eu não vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da mesma caixa, só muda a cor. A escola que tem agora não é muito diferente da de oito anos ou 20 anos atrás. A gente não consegue estabelecer alianças com os governos porque incomoda pensar fora da caixa. Então a gente vem aprendendo a fazer política pública não-governamental.

FREIO EXTRA

Painel

Em 1984, peemedebistas do Paraná viajavam pelo Estado em campanha pelas Diretas Já. Em uma dessas ocasiões, embarcaram num bimotor a caminho do interior o então presidente do PMDB estadual, hoje senador tucano Álvaro Dias, o dirigente Ezequias Moreira, o deputado Hélio Duque e o cantor Wando, que animava os comícios.
No meio da viagem, a porta da aeronave simplesmente se abriu. A apreensão cresceu quando o piloto, já próximo da pista de aterrissagem, avisou aos passageiros:
-Não tem freio! Torçam para que pare dentro da pista!
O avião tocou o chão. Dias, sem hesitar, pôs a perna para fora pela porta aberta e meteu o pé no chão.
O avião de fato parou. Só que Dias acabou sem sapato.

AO ESTADO, ÀS FERAS

ELIANE CANTANHÊDE

Sabe o que mais assusta na história da menina de 15 anos jogada às feras no Pará? É que a delegada, Flávia Pereira, e a juíza, Clarice de Andrade, são mulheres. Sem contar a governadora, Ana Júlia Carepa. Eu adoraria saber se elas têm filhas, se têm cachorros ou gatos. E como os tratam.
Duas mulheres. Uma delegada que deve preservar a segurança e a ordem. Uma juíza responsável pelo cumprimento das leis e pela garantia dos direitos individuais. E ambas conseguem olhar para aquela criança mirrada e infeliz, suspeita de um crime banal, e tratá-la pior do que a um bicho danado.
Quando rapazes de classe média ateiam fogo a um índio que dormia na rua em Brasília e quando outros esmurram uma empregada doméstica num ponto de ônibus no Rio, já é sinal de doença, mas da classe média, das famílias. O que ocorre no Pará é pior: a doença é do próprio Estado, contaminando seus agentes e os cidadãos - por que calaram diante dos gritos desesperados?
A desculpa era que ela seria maior de idade. Ah, bem! Ou que se prostituía. Ah, bem! Então pode? Não, não pode. Seria monstruoso de qualquer jeito. Ter 15 anos, ser pequena e frágil, só torna tudo pior. L., 15, foi largada pelos pais incapazes e pelo tio irresponsável. Vivia pelas ruas. Não é ré, é uma vítima da pobreza e da ignorância. O Estado tinha o dever de salvá-la, mas foi seu pior algoz. Jogou-a às feras, numa cela cheia de homens. Aplicou-lhe queimaduras, fome e violência sexual. A quem recorrer?
Juízes e advogados "finos" de São Paulo e do Rio são ágeis para criticar a polícia por algemar presos grã-finos diante de câmeras de TV. Ou para inundar os jornais defendendo a "decisão técnica" do Supremo que liberou o banqueiro Cacciola para ter um vidão na Europa. E agora, senhores, o que têm a dizer sobre delegadas e juízas capazes de tal atrocidade? Que tipo de punição "técnica" elas merecem?

COM MUITO ORGULHO

CLÓVIS ROSSI

No jogo Brasil x Uruguai, no Morumbi, ouviu-se o velho cântico: "sou brasileiro, com muito orgulho". Orgulho de quê?
1 - Orgulho de saber que uma menina é colocada em cela com um bando de homens, violentada seguidamente e ninguém fez nada?
2 - Orgulho de saber que relatório de entidades de defesa da mulher, já em março, havia apontado abusos contra presas não só no Pará mas em outros quatro Estados e ninguém fez nada?
3 - Orgulho de saber que a governadora do Pará culpa o governo anterior, embora esteja no posto há 11 meses e não tenha feito nada?
4 - Orgulho de saber que o Ministério Público já tentara interditar o estádio da Fonte Nova no ano passado, por falta de segurança, e ninguém fez nada, deixando que morressem sete pessoas e outras 85 ficassem feridas? Só falta agora o governador culpar o antecessor, embora também esteja há 11 meses no cargo.
5 - Orgulho de ouvir o ministro da Educação dizer que a escola pública "nunca" terá a mesma qualidade da escola particular, embora a imensa maioria das crianças brasileiras esteja condenada a estudar na escola pública e, por extensão, condenada a receber menos do que o aluno da escola privada? É esse conformismo que perpetua a desigualdade obscena que prevalece há séculos na pátria. Educação de qualidade para a maioria é uma das poucas maneiras de ao menos reduzi-la.
6 - Orgulho de ver autoridades tentando provar que a menina presa com homens no Pará não tinha 15 anos, mas 19? Se tivesse 60 anos, deveriam então ser condecorados os responsáveis pela barbárie?
7 - Orgulho de ver, dia sim, outro também, cenas e frases como essa ou parecidas demonstrarem o quanto o país é primitivo? Cantemos, pois. É tudo o que resta aos bárbaros.

FIM DE PAPO

Painel

O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, estava no aeroporto de Salvador, à espera do vôo para Brasília, quando foi abordado por um eleitor.
- O senhor era contra o Lula. Agora está no governo.
Como o peemedebista não respondeu ao comentário, o homem fez uma nova tentativa:
- E então, o que o senhor acha disso?
Geddel, enfim, resolveu quebrar o silêncio:
- Eu acho uma coisa que aprendi com meu pai...
- E o que foi? -, indagou o curioso.
- A não falar com estranhos -, encerrou o ministro.

27 novembro 2007

A DOENÇA DO SILÊNCIO

GILBERTO DIMENSTEIN

Do total de alunos examinados em escolas públicas, 70% foram encaminhados para algum tratamento de saúde

Um relatório reservado, preparado na semana passada pela Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo com base em 11.381 exames médicos realizados em escolas públicas, mostra o maior massacre perpetrado contra crianças no Brasil. É a mais abrangente investigação de saúde escolar de que se tem notícia e ratifica estudos isolados já realizados no país.
Do total de alunos examinados, 70% tiveram de ser encaminhados para algum tratamento. Ninguém sabia que eles tinham alguma doença - e, se alguém sabia, nenhuma providência foi tomada.
Equipes de médicos encontraram inúmeros casos de uma doença chamada criptorquidia, que consiste em falha na descida dos testículos para o saco escrotal. Será que ninguém teve o mínimo espanto diante de uma visível anomalia anatômica? Registraram-se múltiplos casos de problemas de saúde, como sopro cardíaco e obesidade. Foram determinadas 434 cirurgias urgentes.
Note-se que estamos falando de 434 cirurgias diagnosticadas com base em 11.381 exames. É uma ínfima amostra de um universo de 2 milhões de estudantes, considerando-se apenas as redes municipal e estadual da cidade de São Paulo. Imagine, então, o que deve acontecer num país com 50 milhões de alunos nas redes oficiais de ensino, a maioria dos quais vivendo em cidades onde as dificuldades são maiores do que em São Paulo.
Era rigorosamente previsível o resultado do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), divulgado semana passada, ou seja, o abismo entre as escolas públicas e as particulares.


O relatório informa que, naquela amostragem, 80% exibiam problemas dentários, que englobam desde cáries até anomalias mais complexas. Tente prestar atenção a qualquer coisa sentindo dor dente para perceber a dificuldade de uma criança numa sala de aula. Pelo menos 10% dos examinados necessitavam de acompanhamento fonoaudiológico. Não é preciso ser um gênio para calcular o impacto que causa a dificuldade de fala no aprendizado.
Os médicos detectaram que pelo menos 3% dos estudantes precisariam de apoio psicopedagógico. "Foram observadas crianças com distúrbios graves de comportamento", afirma o relatório.
Essas informações foram obtidas porque, desde o início deste ano, há um programa de saúde escolar gerido pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Além do número de doentes, aparecem falhas no sistema de saúde. Detectou-se que uma das falhas é a falta de pediatras nos postos de saúde. "Sabíamos que as notícias seriam graves, mas não sabíamos que seriam tão graves", reconhece o secretário municipal da Educação, Alexandre Schneider.
A conclusão óbvia: as crianças têm doenças que dificultam e até impedem o aprendizado. Conclusão menos óbvia: por mais que se gaste dinheiro com educação, muita gente simplesmente não vai aprender e estará condenada à marginalidade.

A discrepância brutal entre as notas obtidas no Enem pelos alunos das escolas privadas e pelos das públicas, como se divulgou na semana passada, tem a ver não só com a qualidade dos professores ou do currículo. Como esse teste é menos focado em memorização e mais em associação de informações de diferentes matérias, pesa ainda mais a bagagem do estudante. Essa bagagem abrange o número de livros em casa, os estímulos com brincadeira desde a primeira infância, leitura de jornais e de revistas, acesso à internet, viagens, concertos, teatro, cinema, visita a museus - e, evidentemente, a saúde.

Um grande número de crianças doentes recebendo tão pouca atenção é um problema que está no nível de barbárie da prisão de uma adolescente numa cela com 20 homens, como ocorreu em Abaetetuba (PA).

PS - Ninguém levou a sério projeto lançado, na semana passada, pelo senador Cristovam Buarque, que obriga os governantes e parlamentares a matricular seus filhos apenas em escolas públicas. Não se levou a sério porque sabemos que o projeto jamais seria aprovado, seja por falta de apoio político, seja por questões legais. A provocação, todavia, é séria.
Conviver com o descalabro de tanta gente doente silenciosamente só é explicável porque os grupos mais poderosos estão muito distantes da educação pública, acompanhada de longe, apenas pelos frios indicadores. A verdade, porém, é que, depois desse documento, feito com base nos exames da Universidade Federal de São Paulo, ninguém mais pode alegar ignorância dos fatos, o que torna todos os governantes cúmplices do problema - tão cúmplices quanto os policiais do Pará, que sabiam que uma adolescente estava numa cadeia com 20 homens.

TÔ DE MAL

LAURA MATTOS - Folha

Calcula-se que até os seis anos de idade quase metade das crianças já teve atitudes preconceituosas, de acordo com a Anti-Defamation League (liga antidifamação), dos EUA

Educadores dizem o que pais podem fazer quando crianças são intolerantes e apresentam dificuldades para aceitar as diferenças

"Estou comendo o Luís, estou comendo o Luís*!" O pequeno Luís, 5, ouvia a frase todas as vezes em que um coleguinha se deliciava com um chocolate. Negro, o garoto era associado à guloseima. Não bastasse a piada sem graça, Luís era rejeitado pelos grupos de sua classe. Na hora das brincadeiras, não era chamado pela turma e ficava sozinho. O caso ocorreu em um colégio de Campo Grande (MS).
É mais comum do que se pensa. Crianças, mesmo as mais novas, demonstram preconceito e dificuldade para aceitar as diferenças. Além do racismo, é vítima comum da sinceridade cruel da meninada qualquer um que apresente uma característica "estranha", como gordinhos ("baleia" e "saco de areia"), os que usam óculos ("quatro-olhos") e baixinhos ("tampinhas"). Sem falar de portadores de deficiência, gagos, tímidos etc. etc.
Nos EUA, o preconceito na infância é tema de inúmeras pesquisas. No Brasil, é raro um estudo voltado à intolerância entre os pequenos, apesar de casos como o de Luís serem freqüentes, segundo pais, psicólogos, pediatras e professores entrevistados pela reportagem.
Calcula-se que até os seis anos de idade quase metade das crianças já teve atitudes preconceituosas, segundo a Anti-Defamation League (liga antidifamação), organização americana sem fins lucrativos.
A pedagoga Lucimar Rosa Dias -de uma ONG que combate o racismo em escolas- foi chamada a desenvolver um trabalho com a turma de Luís e ouviu de crianças de até cinco anos construções como "preto é feio", "preto tem sangue diferente", "negro é sujo", "cabelo Bombril" e "cabelo Assolan".
Professora da PUC de Minas Gerais, Rita Fazzi pesquisou crianças em escolas públicas de bairros de diferentes classes sociais em Belo Horizonte e transformou sua tese no livro "O Drama Racial de Crianças Brasileiras" (editora Autêntica), mostrando que o racismo se manifesta freqüentemente no ambiente escolar.
A questão que mobiliza pais e professores é: Por que o preconceito surge mesmo quando pais não são preconceituosos?

De onde veio isso?
Estudos apontam que as crianças adquirem consciência das diferenças raciais, em média, dos três aos cinco anos, e, com o tempo, passam a atribuir julgamentos aos diferentes grupos com base na observação do meio em que vivem.
"Ela ainda não tem maturidade para saber o que é adequado ou não. Isso irá se firmar com o passar dos anos e, por volta da adolescência, ela será mais capaz de controlar o que deve ou não dizer e fazer. A espontaneidade infantil existe para o bem e o mal", diz o psiquiatra Fernando Ramos, do Departamento de Infância e Adolescência da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
Ele e outros estudiosos defendem a idéia de que o preconceito é sempre aprendido, dentro ou fora da família. Por isso, ainda que os pais não sejam preconceituosos, seus filhos podem surpreendê-los com ofensas a alguém que apresente alguma diferença.
Um prédio de classe média da Vila Mariana (zona sul de São Paulo) foi palco de um típico caso em que as crianças foram influenciadas pelo preconceito dos adultos. Letícia*, 10, filha de uma lésbica, foi morar no apartamento da namorada da mãe nesse edifício. Boa parte dos vizinhos proibiu seus filhos de brincar com ela, e alguns chegaram a determinar às crianças que nem cumprimentassem a garota. Resultado: Letícia fica isolada e é chamada de sapatão pelo grupinho.
O preconceito pode ser transmitido de forma sutil, como lembra o pediatra de Porto Alegre Ricardo Halpern, presidente do Departamento Científico de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria. "Mãe e filha estão de mãos dadas, por exemplo, e, ao cruzarem um homem negro, a mão da criança é apertada com um pouco mais de força. Outra situação: pai ou mãe se encontram com uma pessoa branca e outra negra. Beijam a primeira e não a segunda. É o suficiente para que a antena parabólica da criança capte os sinais."
Fora isso, não passa despercebido pelas crianças o fato de negros normalmente ocuparem profissões subvalorizadas, de as bonecas mais badaladas e as princesas dos contos de fada serem loiras e de olhos azuis e de todas as modelos famosas serem magérrimas.

Natural do crescimento
Mas não é unânime a idéia de que o preconceito na infância esteja necessária e exclusivamente ligado a um exemplo negativo dentro ou fora de casa. Uma linha da psicanálise (kleiniana) relaciona atitudes preconceituosas nos pequenos com estruturas emocionais inatas, como o medo, a agressividade e a incapacidade de elaborar um conceito. O preconceito é visto como parte do crescimento e só irá permanecer se encontrar eco no universo da criança.
"A criança pequena está inundada por novos estímulos e sensações que desconhece. Vive momentos de angústia e pode colocar isso para fora com um xingamento ou um palavrão que escutaram de um adulto", diz a psicanalista infantil Anne Lise Silveira Scappaticci, da Unifesp.

Como agir?
Como tudo relacionado à educação dos filhos, não há uma receita pronta para pais que enfrentam uma situação de preconceito com suas crianças -vítimas ou "agressoras".
Diante da complexidade do assunto, é preciso tentar entender ao máximo o que se passa na cabecinha dos filhos. "Partir direto para uma censura forte pode não ser a solução, porque a criança se intimida, e os pais não conseguirão saber o que ela está pensando. É importante chamar para um conversa e investigar que questões a levaram a ofender a outra pessoa", sugere o psiquiatra infantil Fernando Ramos.

"Bullying"
Muitas escolas hoje debatem com os alunos a questão do "bullying", prática repetitiva de preconceito contra uma determinada criança. "É preciso estar muito atento, porque muitas vezes os xingamentos são velados e longe dos olhos dos educadores. Isso sem falar do "bullying" praticado em sites de relacionamento, como o Orkut", lembra o coordenador pedagógico Cesar Pazinatto.
O preconceito entre crianças tem um forte potencial destrutivo para as vítimas, e pais e professores devem agir, segundo o pediatra Halpern. E nem sempre as vítimas chegarão em casa contando aos pais de que forma foram ofendidas.
Com os ofensores, é bom ser compreensivo, o que não significa permissivo, segundo a psicanalista Anne Lise Scappaticci. "Compreender não quer dizer deixar para lá, mas acolher aquela angústia e ensinar a criança a pensar sobre aquilo." E, que fique claro: mandar pedir desculpas nunca é demais.

* Nomes trocados


Pais devem olhar para seus preconceitos e como transmitem crenças aos filhos

A reportagem conversou com Lindsay J. Friedman, diretora do instituto Um Mundo de Diferenças, da Anti-Defamation League (liga antidifamação), entidade que atua contra diversos preconceitos. "Um estudo mostrou que quase 50% das crianças têm algum tipo de comportamento racista até os seis anos", diz Friedman

FOLHA - Como o preconceito surge no período da infância?
LINDSAY J. FRIEDMAN
- Todos crescem desenvolvendo algum tipo de preconceito transmitido pelos pais, por experiências pessoais, pela mídia etc. Recebemos muitos relatos de de xingamentos e provocações por parte de crianças baseados na identidade da pessoa -raça, religião, orientação sexual real ou a percebida pelo grupo.

FOLHA - O que os pais podem fazer?
FRIEDMAN
- Primeiramente, precisam olhar para seus preconceitos e observar como podem estar transmitindo suas crenças aos filhos. Que tipo de piada contam e de quais riem?
Atribuem estereótipos a determinados grupos? Estimulam os filhos a brincar e a desenvolver relações com crianças que sejam diferentes delas? Essas atitudes têm impacto sobre as crianças. Ser um modelo positivo é muito importante. Além disso, os pais precisam contestar comentários dos filhos que estejam explicitando preconceito e também responder a questões que os filhos tenham sobre as diferenças que estão a sua volta.

FOLHA - Como agir se o filho tiver atitudes preconceituosas?
FRIEDMAN
- Falar diretamente com a criança para questionar por que ela teve aquela opinião. As crianças pequenas podem não entender o real significado do que estão dizendo e apenas usando palavras que sabem que vão machucar. Nesse caso, é importante ajudá-las a entender o impacto dessas opiniões e atitudes e ser firme sobre como as pessoas precisam ser tratadas e respeitadas.

FOLHA - E se a criança for vítima de preconceito?
FRIEDMAN
- Primeiro é muito importante ajudá-la a entender que aquele incidente não é culpa dela. Os pais precisam dar muito apoio e incentivá-la a expressar como se sente. Dependendo da idade da criança e das circunstâncias, podem dizer o que ela pode responder ou fazer diante de uma atitude preconceituosa. Na escola, podem orientá-la a pedir ajuda ao professor. Em alguns casos, pode ser apropriado intervir diretamente e falar com a família da outra criança ou com a escola.