19 novembro 2007

BISMARCK, A PETROBRAS E OS DOIS JUMENTOS

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Sem um entendimento entre o setor privado e o Estado, o etanol pode se tornar um fracasso incomensurável

"Não sou tão estúpido assim que não aproveite a inteligência de meus inimigos". A frase caracteriza o espírito e a ação daquele que unificou, fundou e foi o primeiro dirigente da Alemanha, o duque Otto von Bismarck. E por isso foi considerado o maior estadista daquele país. O presidente Lula também foi considerado um estadista ao criar uma espécie de "Secretaria de Futurologia e Adivinhação" e entregá-la a um seu contumaz crítico.
Porém, nesse caso, o paralelo com Bismarck não se completa, pois nada permite concluir que alguma inteligência possa vir a ser aproveitada. Em realidade, a conclusão é trivial. Para ser considerado um estadista, uma precondição é a de que seja colocado acima de seus sentimentos pessoais o interesse da sociedade.
Os empresários estão às turras com a Petrobras. Na imprensa, pululam notícias de que o Estado brasileiro (a Petrobras) está se apoderando do controle do etanol. A desconfiança do setor privado em relação à Petrobras é pertinente. Durante muito tempo, assumindo suas responsabilidades como braço do Estado, foi ela obrigada a incorporar e digerir perdas devido à distribuição do álcool que então significavam custos razoavelmente superiores aos do petróleo, ao qual substituía. É, portanto, compreensível a sua aversão histórica ao etanol.
É bom lembrar que, em contrapartida, o golpe de misericórdia no Proálcool foi orquestrado pela presidência da Petrobras. Naquele momento, a condição de "empresa" se superpôs à de braço estatal consciente de suas obrigações para com a nação. Por outro lado, não é possível deixar de considerar o inerente conflito de interesses que significa a mesma empresa comercializar um produto próprio concomitantemente com outro produzido por terceiros e que concorre com o seu, sobretudo quando detêm essa empresa o monopólio da distribuição. É por isso que, na maioria dos países industrializados, há legislação impedindo essa pouco salutar configuração comercial.
Entretanto, a possível e muito esperada expansão da produção de etanol no Brasil se fará, se por acaso vier a acontecer, de maneira muito peculiar, devido a uma explosão da demanda internacional. Há hoje em operação no Brasil cerca de 350 usinas, com 85% da produção concentradas no Estado de São Paulo e vizinhança (60% no norte do Estado, de pequenas dimensões espaciais). Mais 120 projetos, entre novas usinas e ampliações, estão em construção ou em fase de licenciamento, situados todos na mesma região.
E por que será que essa perversa concentração já existente viria a se acentuar ainda mais com essas novas 120 destilarias e muitas outras futuras? Simplesmente porque já há, embora precária, uma infra-estrutura viária que, apesar dos custos elevados, permite o escoamento da produção atual. Todavia, nada assegura que mesmo esse acréscimo já em andamento não venha a saturar o sistema viário existente, pelo menos em alguns pontos críticos. Também parece inevitável uma guerra de preços entre usinas por cana cuja expansão agrícola não ocorrerá na mesma proporção.
Por outro lado, estudos realizados na Unicamp mostram que o escoamento da produção por via rodoviária tem custos entre dez e cem vezes maiores do que os alcançáveis por alcooldutos, dependendo da localização. Todavia, dutos só se tornam economicamente viáveis acima de certos volumes mínimos, o que exige concentrações e distribuições da produção adequadas.
Ora, não há como o setor privado enfrentar essa questão sem uma decisiva contribuição do Estado. Acrescente-se a necessidade de terminais portuários, navios-tanques, meios de armazenamento, não apenas para estoques logísticos mas também estratégicos. O planejamento e a construção dessa parafernália também exigem a participação do Estado.
Pois bem, estamos em uma situação em que, sem um entendimento entre o setor privado e o Estado, o etanol pode se tornar um fracasso incomensurável, com perdas irreversíveis para o país. Sem o apoio do Estado, nem sequer um crescimento vegetativo para atender o mercado interno será possível. Também é verdade que o Estado não tem como se tornar um produtor de etanol.
O impasse me lembra uma caricatura dos anos 50. Dois jumentos amarrados por uma corda esticada se esforçam para alcançar montículos de feno distantes além da dimensão da corda. Depois de muito sofrerem, entendem que precisam colaborar para não perecer e abocanham os dois juntos um montinho de cada vez.
Esperemos que o setor privado e o governo aprendam com os jumentos e se mostrem tão inteligentes quanto.
E que, como Bismarck, ponham o interesse nacional (e os seus próprios) acima de suas picuinhas tribais.

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