JANIO DE FREITAS
Se narrado como episódio da Alemanha nazista, o que ocorreu à menina paraense seria o quê, senão crime de tortura da bestialidade?
Com a notícia inicial , veio a impressão de ser um caso que ultrapassou muito os atos de barbarismo policial, mas, como dizem de tantos outros, isolado. Logo ficou evidente que a novidade não estava na prisão de uma menina de 15 anos em cela com 20 homens, que a estupraram durante 26 dias, em uma delegacia de polícia. A novidade estava só na revelação pública do caso. Feita a primeira, logo apareceu a segunda, em outra cidade, com uma moça de 23 anos como vítima. E, ao fim de quatro dias, a governadora do Pará, da qual até então só se soubera de sua permanência no Rio - não em reuniões sobre o assunto, mas, naturalmente, com empresários -, de volta ao seu palácio informou ser a prisão de mulheres em celas com homens, como alimento jogado às feras, "uma prática lamentável, que, infelizmente, já acontece há algum tempo".
A governadora Ana Júlia Carepa não faltou, porém, com a velha palavra tranqüilizante e dignificadora, como é próprio dos governantes: "O governo do Estado não compactua com a violação dos direitos humanos e vai apurar os fatos com rigor". Compactua, sim. E não só o Estado, assim impessoal. A cadeia de Abaetetuba está sob a responsabilidade de policiais que, por sua vez, estão sob a responsabilidade da administração estadual, cujo maior responsável é, sempre e só, o governador ou governadora. Nada é impessoal nesse colar de responsabilidades.
E, no caso das responsabilidades pelo que ocorreu à menina e a governadora informa ocorrer "há algum tempo" a mulheres presas, trata-se de crime. Pelo qual a governadora Ana Júlia Carepa deveria determinar a pronta prisão dos autores e suspeitos, em vez do simples afastamento, claro que remunerado, para inquérito administrativo. Deixar de fazê-lo é mais um modo de compactuar com aquele e com o abrandamento de outros crimes da polícia do Pará, por certo a mais bárbara do país.
Por acaso ou não, a entrevista da governadora foi acompanhada pela divulgação simultânea, na sede européia da ONU, de um relatório que afirma haver "tortura sistemática no Brasil". Já não era assunto para a governadora. O ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, reagiu com a necessária negação: "Não existe tortura sistemática no Brasil", quando ocorre nas prisões "não é como regra".
A tortura é sistemática, sim. Criadas pelas chamadas autoridades de ontem e mantidas pelas de hoje, as condições das cadeias brasileiras são práticas de tortura fotografadas, filmadas, expostas em jornais e revistas e exibidas publicamente em cinemas e na tv: três, quatro vezes a quantidade de pessoas admissível nas celas exíguas em presídios e delegacias, revezando-se para dormir, sem arejamento, sem sol, com iluminação mínima, em imundície geral, fedor terrível e comida nojenta ou deteriorada - por meses sucessivos, para milhares, por ano após ano. Não são celas: são jaulas, onde quem não é fera ao entrar, encontra todos os motivos para sair transformado em fera.
Isso não é regra no Brasil? E não é uma forma de tortura? Se narrado como episódio da Alemanha nazista, o que ocorreu à menina paraense seria o quê, senão um crime de tortura da bestialidade nazista? E até onde as cadeias brasileira diferem daquelas típicas dos regimes mais barbaramente criminosos?
Os que criam e mantêm tudo o que é sistemático nas cadeias brasileiras não são o balconista da farmácia e o gari. Há 11 meses, 27 governadores tomaram posse, mas até hoje não se soube que um só deles se voltasse com ação efetiva contra as formas de tortura praticadas, com freqüência, já no ato mesmo de prender, até o encarceramento em delegacias e, por fim, nos presídios das revoltas sucessivas. Se a governadora Ana Júlia Carepa pode ter algum consolo, é a de que tem a seu lado 26 governadores compactuando com a tortura sistemática.
Por mais eficiente que seja a prática de só chamar de tortura determinados métodos de extorquir afirmações, não se diminui a verdade de que o Brasil é um país praticante de tortura como norma. O que não é regra, é minoria, são delegacias e presídios que não neguem o art. 5º-III da Constituição: "Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".
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