27 novembro 2007

A DOENÇA DO SILÊNCIO

GILBERTO DIMENSTEIN

Do total de alunos examinados em escolas públicas, 70% foram encaminhados para algum tratamento de saúde

Um relatório reservado, preparado na semana passada pela Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo com base em 11.381 exames médicos realizados em escolas públicas, mostra o maior massacre perpetrado contra crianças no Brasil. É a mais abrangente investigação de saúde escolar de que se tem notícia e ratifica estudos isolados já realizados no país.
Do total de alunos examinados, 70% tiveram de ser encaminhados para algum tratamento. Ninguém sabia que eles tinham alguma doença - e, se alguém sabia, nenhuma providência foi tomada.
Equipes de médicos encontraram inúmeros casos de uma doença chamada criptorquidia, que consiste em falha na descida dos testículos para o saco escrotal. Será que ninguém teve o mínimo espanto diante de uma visível anomalia anatômica? Registraram-se múltiplos casos de problemas de saúde, como sopro cardíaco e obesidade. Foram determinadas 434 cirurgias urgentes.
Note-se que estamos falando de 434 cirurgias diagnosticadas com base em 11.381 exames. É uma ínfima amostra de um universo de 2 milhões de estudantes, considerando-se apenas as redes municipal e estadual da cidade de São Paulo. Imagine, então, o que deve acontecer num país com 50 milhões de alunos nas redes oficiais de ensino, a maioria dos quais vivendo em cidades onde as dificuldades são maiores do que em São Paulo.
Era rigorosamente previsível o resultado do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), divulgado semana passada, ou seja, o abismo entre as escolas públicas e as particulares.


O relatório informa que, naquela amostragem, 80% exibiam problemas dentários, que englobam desde cáries até anomalias mais complexas. Tente prestar atenção a qualquer coisa sentindo dor dente para perceber a dificuldade de uma criança numa sala de aula. Pelo menos 10% dos examinados necessitavam de acompanhamento fonoaudiológico. Não é preciso ser um gênio para calcular o impacto que causa a dificuldade de fala no aprendizado.
Os médicos detectaram que pelo menos 3% dos estudantes precisariam de apoio psicopedagógico. "Foram observadas crianças com distúrbios graves de comportamento", afirma o relatório.
Essas informações foram obtidas porque, desde o início deste ano, há um programa de saúde escolar gerido pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Além do número de doentes, aparecem falhas no sistema de saúde. Detectou-se que uma das falhas é a falta de pediatras nos postos de saúde. "Sabíamos que as notícias seriam graves, mas não sabíamos que seriam tão graves", reconhece o secretário municipal da Educação, Alexandre Schneider.
A conclusão óbvia: as crianças têm doenças que dificultam e até impedem o aprendizado. Conclusão menos óbvia: por mais que se gaste dinheiro com educação, muita gente simplesmente não vai aprender e estará condenada à marginalidade.

A discrepância brutal entre as notas obtidas no Enem pelos alunos das escolas privadas e pelos das públicas, como se divulgou na semana passada, tem a ver não só com a qualidade dos professores ou do currículo. Como esse teste é menos focado em memorização e mais em associação de informações de diferentes matérias, pesa ainda mais a bagagem do estudante. Essa bagagem abrange o número de livros em casa, os estímulos com brincadeira desde a primeira infância, leitura de jornais e de revistas, acesso à internet, viagens, concertos, teatro, cinema, visita a museus - e, evidentemente, a saúde.

Um grande número de crianças doentes recebendo tão pouca atenção é um problema que está no nível de barbárie da prisão de uma adolescente numa cela com 20 homens, como ocorreu em Abaetetuba (PA).

PS - Ninguém levou a sério projeto lançado, na semana passada, pelo senador Cristovam Buarque, que obriga os governantes e parlamentares a matricular seus filhos apenas em escolas públicas. Não se levou a sério porque sabemos que o projeto jamais seria aprovado, seja por falta de apoio político, seja por questões legais. A provocação, todavia, é séria.
Conviver com o descalabro de tanta gente doente silenciosamente só é explicável porque os grupos mais poderosos estão muito distantes da educação pública, acompanhada de longe, apenas pelos frios indicadores. A verdade, porém, é que, depois desse documento, feito com base nos exames da Universidade Federal de São Paulo, ninguém mais pode alegar ignorância dos fatos, o que torna todos os governantes cúmplices do problema - tão cúmplices quanto os policiais do Pará, que sabiam que uma adolescente estava numa cadeia com 20 homens.

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