12 novembro 2007

NESTLÉ MONTA PLANO B PARA ENFRENTAR RISCO DE FALTA DE GÁS

Folha de S. Paulo

Empresa quer evitar o que ocorreu em 2001, com o apagão elétrico; se faltar gás, solução será voltar a utilizar óleo

Assim que recebeu a notícia, na noite de terça-feira, de que a Petrobras passaria a racionar gás, Ivan Zurita, presidente da Nestlé, tomou duas medidas: ligou para o ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, e convocou um comitê de crise. Com o governo, Zurita queria saber quais as reais ameaças de um novo apagão energético. Com sua equipe técnica, a intenção era montar um plano B em caso de contingência. "Fiquei preocupado porque temos projetos e investimentos previstos que estão ligados ao "mix" de energia, que, de uma hora para outra, passa a não valer mais. Garantir energia é obrigação do governo." Segundo Zurita, falta planejamento ao governo, do mesmo modo que faltou fiscalização no caso do leite adulterado e agressividade comercial na assinatura de acordos bilaterais, que dêem ao Brasil mais acesso a mercados internacionais. A Nestlé, maior empresa de alimentos no país, fatura R$ 12,4 bilhões e tem 16 mil funcionários em 28 fábricas. (GUILHERME BARROS e CRISTIANE BARBIERI)

FOLHA - A Nestlé pretende dobrar de tamanho em cinco anos. A crise energética vai atrapalhar?
IVAN ZURITA -
Não é a energia que preocupa, mas o atraso diante da realidade que vivemos. O PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] é uma iniciativa de recuperação de terreno perdido. O plano vai nos atualizar, mas, se demorar muito, quando o PAC acontecer vamos estar precisando de outro PAC. O governo prima pela falta de planejamento. Toda companhia deste país que não se atualizou buscando eficiência, de 1964 para cá, quebrou. O governo é o mesmo de 1964, só que grande, e quem paga essa diferença somos nós. Só que não dá mais! O nível da carga tributária exerce uma barreira contra o desenvolvimento do país.

FOLHA - Mas o sr. não ficou preocupado com o anúncio do racionamento de gás?
ZURITA -
Sim, claro. Temos projetos e investimentos previstos que estão ligados ao "mix" de energia. De repente, esse "mix" não vale mais, e o que é pior: não é a primeira vez. Passamos apertado durante a crise do petróleo, quando o governo restringiu o consumo de óleo da indústria. Compramos 20 mil hectares de floresta para usar o cavaco na geração de energia.
Substituímos todas as caldeiras e o preço do petróleo caiu. Voltamos para óleo. Com o gasoduto [ligando Brasil e Bolívia], fomos incentivados a mudar a geração para gás. Investimos R$ 7 milhões, mas, se amanhã não tiver gás, vamos ter de voltar para o óleo. Aprendemos a ter um "mix" energético, mas o governo não melhorou seu planejamento. Energia é o mínimo que tem de ter num país que requer investimentos. É um problema que o governo tem de resolver, bem como o problema de infra-estrutura, para que possamos "comprar" o investimento no Brasil. Se não há estradas, se não há portos, se não há aeroportos, o que se quer como país?

FOLHA - Já houve alguma mudança na Nestlé por conta da crise?
ZURITA -
Liguei para o [ministro do Desenvolvimento] Miguel Jorge e combinamos uma reunião quando eu for a Brasília. O governo está preocupado e o ministério está conformando um plano. Também montamos um comitê de crise e já temos alternativas. Estamos acompanhando as informações, mas já autorizei um plano B em caso de racionamento, para converter o gás em óleo. No caso do leite foi a mesma coisa.

FOLHA - Vocês também montaram um comitê de crise?
ZURITA -
Sim, porque com essas coisas não se pode dormir no ponto. No apagão de 2001, montamos uma operação de guerra. Tivemos de ir a Brasília para conseguir permissão para alugar geradores do Chile. Colocamos em carretas que iam de fábrica em fábrica. Tivemos de alterar turnos. Com essas situações não dá para perder tempo.

FOLHA - Faltou fiscalização no caso do leite adulterado?
ZURITA -
Falta fiscalização em muita coisa. Se fosse um país de Primeiro Mundo, um funcionário do SIF [Serviço de Inspeção Federal] em cada lugar seria suficiente. No Brasil, não é.

FOLHA - A Nestlé comprava de uma das cooperativas que adulteravam o leite. Houve contaminação?
ZURITA -
Somos os maiores compradores de leite do Brasil. Neste ano, vamos superar os 2 bilhões de litros e fiscalizamos todo o leite que processamos duas vezes: na retirada do campo e na chegada à fábrica. Medimos tudo: proteína, bactérias, água oxigenada, antibiótico. Chegamos a comprar dessas cooperativas há uns dois anos, mas fazemos todos os testes de controle. Se deu alguma variação de acidez, nem carregamos o leite. Se notarmos qualquer variação na composição do produto, ele é rejeitado e nunca mais o fornecedor trabalha para nós. Asseguramos a qualidade do processo. Temos 44 mil fornecedores no Brasil e todas as matérias-primas são cadastradas, selecionadas e controladas. O "batismo" com água oxigenada e soda cáustica foi criminoso e irresponsável.

FOLHA - Esse problema poderá refletir nas exportações brasileiras?
ZURITA -
Apesar de exportarmos leite só quando há excedente - o que não aconteceu neste ano-, as vendas ao exterior são muito importantes para nós. Como estamos em muitos países, se tivéssemos acesso a mais mercados poderíamos aumentar a produção graças a escala e a matérias-primas. As exportações respondem por 8% de nossa receita, mas poderia ser mais. Temos de tirar vantagem do tamanho do país.

FOLHA - O que falta?
ZURITA -
Uma política mais agressiva do governo. Quando o [Luiz Fernando] Furlan estava no ministério [do Desenvolvimento], dizia para ele que não queríamos que o governo negociasse para a gente, mas que nos desse regras iguais.

FOLHA - Como assim?
ZURITA -
Que abrisse o mercado. Que quando fosse negociar com a China, que colocasse alimentos na pauta. Hoje, no mundo, faltam 800 mil toneladas de leite em pó. O Brasil é o único país que pode atender à demanda. Se a produção brasileira for estimulada, podemos chegar a 4 bilhões de litros. Mas, se o mercado não for aberto, onde vou colocar esse leite? O consumo de leite chinês cresce 16% ao ano. O que vai estimular essa cadeia é a abertura do mercado.

FOLHA - Mas o que é necessário?
ZURITA -
O governo atuar, abrir mercados e fazer acordos bilaterais. Estamos ligados ao Mercosul e tudo passa pelo bloco, mas o Brasil é o único país que respeita essa regra. Como o Mercosul não funciona, estamos parados e o México, avançando. O México tem mais de 200 acordos bilaterais. O Brasil tem 30, que não funcionam.

FOLHA - Temos de romper com o Mercosul?
ZURITA -
Nos preocupamos com a geopolítica e nos esquecemos dos negócios. Um acordo funciona ou sai fora. A chance de ter um sócio quebrado e ganhar velocidade é muito difícil. Pelo tamanho do Brasil e sua escala, temos de jogar na liga principal. Essa amarra não leva à vantagem competitiva.

FOLHA - Analistas dizem que a Nestlé só dobrará de tamanho em cinco anos se fizer aquisições. A empresa tem planos nesse sentido?
ZURITA -
Temos um plano muito bem calculado. Da meta de dobrar, R$ 1 bilhão da receita projetada, cerca de 5% do total, virá de aquisições.

FOLHA - Qual foi a estratégia para fazer o faturamento passar de R$ 4,6 bilhões em 2001 para os R$ 12,4 bilhões deste ano?
ZURITA -
A Nestlé vinha perdendo espaço por marasmo interno. Passamos por um choque de gestão, no qual criamos joint ventures, companhias, mudamos estrutura e organograma. Atuamos em quatro frentes: eficiência, inovação, aquisições e comunicação. A arquitetura da companhia mudou. Hoje não comparamos Nestlé com Kraft, mas chocolates Nestlé com Kraft, sorvetes Nestlé com Kibon. Cada segmento funciona como uma companhia menor. Investimos muito em informática. Nossa central em Ribeirão Preto [SP] vende serviços para 21 países.

FOLHA - Quanto a Nestlé investirá no próximo ano?
ZURITA -
Investimos R$ 250 milhões a R$ 300 milhões por ano, fora as aquisições. No ano que vem vamos dobrar os investimentos, atingindo R$ 500 milhões, principalmente em aumento de capacidade. A cada três pontos de incremento de receita, abrimos uma nova fábrica-tipo. Crescemos 10,6% neste ano, sendo 21% no Nordeste, e inauguramos três unidades. No ano que vem deveremos crescer o dobro do PIB.

FOLHA - O crescimento no Nordeste foi causado só pelo Bolsa Família?
ZURITA -
Durante a reestruturação, fizemos uma imersão para conhecer o povo brasileiro. Numa das análises, todos os diretores, inclusive eu, fomos para favelas conhecer de perto o consumo das classes C, D e E. Aprendemos, por exemplo, que o fluxo de caixa dessas famílias é diferente. É semanal e o desembolso é de R$ 1. Por isso, criamos a estrutura de vendas porta-a-porta e muitos produtos para esses consumidores. Fizemos sorvete líquido que congela em meia hora, que tem custo menor de distribuição e o consumidor tem custo menor de eletricidade. Tem tablete de chocolate cuja moeda de troca é R$ 1. Adaptamos e criamos produtos. Não adianta pegar o modelo do Carrefour e jogar na favela que não vai funcionar. Hoje temos pessoas da favela, que passaram por treinamento na Suíça, contratadas para pilotar projetos para o consumidor de baixa renda. Temos 97% de penetração nos domicílios brasileiros. O que precisamos fazer para intensificar a relação com o consumidor? Esse tipo de atividade... Não é necessariamente a mais rentável para nós, mas não interessa. Acreditamos que o país e o poder aquisitivo das pessoas vai melhorar.

FOLHA - Por que o sr. decidiu ser o porta-voz da Nestlé na crise do leite? A Parmalat escolheu a Hebe...
ZURITA -
Nossa empresa não precisa de um personagem importante para mostrar sua postura. Só me faltava ter de contratar uma pessoa para fazer isso, porque qualquer diretor da Nestlé tem credencial para falar. Não preciso contratar a Hebe [Camargo], com todo o respeito que tenho por ela, para mostrar que não há nenhum risco para o consumidor.


*

Isto é democracia.
Que o Brasil seja um país democrático eternamente.

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