Folha de S. Paulo
Moradores dizem que jovem aproveitava proximidade da cela com a rua para pedir ajuda
Segundo tia de um dos presos que foi transferido após caso ser descoberto, população tinha medo de denunciar a situação
Foi lá que, durante pelo menos 20 dias, uma menina de 15 anos, L., acusada de tentativa de furto, permaneceu encarcerada com mais de 30 homens, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos, que só tiveram fim no dia 15.
"Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada", disse uma mulher na delegacia, sexta-feira à noite.
"Antes de comer, os presos se serviam dela", lembra inflamada outra mulher, falando alto bem em frente à sala do delegado de plantão. Refere-se ao fato de os presos obrigarem a menina a praticar sexo como condição para lhe darem alimento.
"Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar", afirma outra.
Nos bastidores do governo federal, em Brasília, existe a convicção de que o caso configura-se em uma das mais graves violações dos direitos humanos, uma ofensa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, além de ferir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
O mais constrangedor, porém, é que todo esse horror foi patrocinado por instituição do Estado (a Polícia Civil) comandada pela petista Ana Júlia Carepa, governadora do Pará.
L. não poderia estar no sistema penitenciário, menos ainda sob acusação de tentativa de furto e, pior, presa entre homens. "Só se pode internar um adolescente por violência, grave ameaça ou prática reiterada de delito grave, o que não era o caso", diz a advogada Márcia Ustra Soares, 42, da subsecretaria de promoção dos direitos da Criança e do Adolescente da Presidência da República.
Os presos até que tentaram camuflar a presença daquele corpo estranho no meio de tantos homens. "Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas", diz a mãe biológica. "Cortaram o cabelo dela com um terçado [facão], para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha." Mas não funcionou.
L. continuou vestindo as roupas que usava ao ser presa -sainha curta e blusinha que deixava evidentes os seios adolescentes. Seu corpo mirrado, com menos de 1,40 m, tampouco permitia que ela fosse enfiada nas roupas de seus companheiros de cela.
A carceragem onde a menina ficou trancada agora está quase vazia -os homens presos que conviveram com ela foram todos removidos para penitenciárias próximas. Apenas um jovem de 19 anos, Landrisson André Santos Mauegi, acusado de tentativa de furto de uma bicicleta, estava detido no local na sexta-feira (ele foi parar lá depois da libertação de L.). A mãe de Landrisson, Maria Santos, 75, vai ao local todos os dias para levar sanduíches, cigarros e conforto ao seu caçula. Nem precisa passar pelo carcereiro. Basta esticar o braço.
Se era tão flagrante a identidade feminina e quase infantil de L., por que ninguém denunciou antes? "Medo de morrer. Aqui todo mundo tem medo", diz a tia de um dos presos transferidos. "Se a delegada põe uma menina na cela com os homens, e a juíza mantém ela lá, quem sou eu pra denunciar. Aliás, denunciar para quem?"
A delegada a que se refere a mulher é Flávia Verônica Pereira, responsável pela prisão em flagrante de L. A juíza é Clarice Maria de Andrade.
No dia 14, finalmente, o Conselho Tutelar de Abaetetuba recebeu uma denúncia. Anônima. A delegada foi afastada de suas funções no dia 20 e a juíza está sendo investigada pela Corregedoria de Justiça. A Folha tentou sem sucesso contatar ambas por telefone na sexta.
Os presos me castigavam, afirma jovem
L. deita-se no colo de Diva de Jesus Negrão Andrade, 42, do Conselho Tutelar de Abaetetuba, uma das responsáveis pela sua libertação. Abraça a mãe biológica, de 44 anos. Em seguida, joga-se nos braços da madrasta, para logo depois agarrar-se à agente da Polícia Rodoviária Federal que faz a sua escolta.
A Folha encontrou L. e sua família (mãe, madrasta e o pai biológico) nas dependências da Polícia Rodoviária Federal em Belém, sob o comando do superintendente Isnard Ferreira, 51, que vem garantindo a proteção do grupo desde sexta-feira passada, a pedido da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão ligado à Presidência da República.
A menina morena ainda traz marcas de queimaduras nas solas dos pés, hematomas pelo corpo causados por surras com pau de vassoura e os cabelos bem curtos, cortados a facão pelos presos com quem dividiu a cela em Abaetetuba.
"Eles me castigavam quando eu não fazia o que eles queriam", diz. Agora, ela está eufórica. Ri, dança, conversa, oferece bolachas de chocolate a todos.
De acordo com a mãe biológica, cearense que está há 23 anos no Pará, sua filha está "como um passarinho que fugiu da gaiola". Ela pede: "Maneira um pouquinho, menina. A situação é grave". L. não escuta, sente-se segura agora que está perto da família e longe de Abaetetuba.
São todos muito pobres. O pai, trabalhador rural, teve de retirar um dos pulmões, atacado pelo câncer. Fala com um fiapo de voz (a doença também afetou-lhe as cordas vocais) e seus olhos enchem-se de lágrimas ao contar o que a filha passou na cadeia. Antes, com os dedos indicador e médio esticados, pedia, em mímica, um cigarro para a ex-mulher.
Parte da família mora isolada em Vila do Conde, município de Barcarena. Outra parte mora na zona rural. L., por sua vez, foi morar com um tio em Abaetetuba, para poder estudar. Ela freqüentava a quinta série do supletivo do Colégio Santa Clara, onde suas matérias preferidas eram matemática e ciências -"odeia" português.
Por essas contingências geográficas, a distância mínima entre cada ponta da família era de duas horas, indo de ônibus.
Os contatos acabavam sendo esparsos. "Uma vez por semana, às vezes mais, às vezes menos", diz a mãe, que tem outros cinco filhos. Por isso, quando a garota sumiu, ninguém se deu conta.
Adolescente típica, L. está sempre com fome. Para o primeiro encontro com a mãe depois da cadeia, fez um único pedido sério: que ela levasse de presente uma caixa de bombons Garoto. Diz que já teve um grande amor, Luízo -assim mesmo-, que morreu.
Sobre o que aconteceu na delegacia de Abaetetuba, L. pouco quer falar. Mas diz que havia "um cara muito gente boa" que a defendia quando a violência crescia demais. Foi esse preso, aliás, o primeiro a dizer que todos na cadeia sabiam que L. tinha apenas 15 anos de idade, quando a Polícia Civil insistia em dizer que ela era maior.
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Não há palavras que possam expressar minha indignação, revolta e vergonha.
O que fazer? O sentimento de impotência dói na alma...
Não podemos aceitar. É preciso reagir.
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