09 janeiro 2008

O FIM DA CONSTITUIÇÃO

ANDRÉ RAMOS TAVARES

Parece haver uma onda de desvario que varre as idéias constitucionais em toda a América. A Constituição seria um marco superado?

Neste ano, serão comemorados os 20 anos de vida da Constituição brasileira. O título deste artigo, embora se refira a uma reflexão mais ampla, convoca à conscientização sobre o inóspito cenário nacional, que, desde 1988, deu à luz 62 emendas constitucionais, responsáveis por desfigurar e promover extensas amputações e rupturas do texto original da Constituição cidadã. Além disso, enfrentamos a recente proposta de uma miniconstituinte.
Mas o tema nitidamente transcende os limites territoriais brasileiros: parece haver, atualmente, uma onda de desvario que varre as idéias constitucionais em toda a América. Venezuela, República Dominicana, Equador e Bolívia pretendem realizar, estão realizando ou já realizaram profunda reforma ou substituição de suas Constituições.
Nos EUA, berço da civilização constitucional, uma proposta para substituir a Constituição, de 1787, nem seria considerada seriamente. E emendas dependem de lenta e improvável ratificação por Estados-membros. Mas isso não bloqueia manobras rebuscadas (de manipulação): faz-se a alteração por meio de uma releitura pelo governo, que edita leis e decretos nitidamente inconstitucionais.
Daí a indagação mais geral: seria a Constituição um marco superado pelos movimentos ou vontades "populares" (reforçados pelos desafios da globalização, da complexidade e do multiculturalismo)? Seriam as Constituições realmente "quixotescas" e, por isso, sua aniquilação, como conhecidas e consagradas, é iminente?
Uma análise detida do cenário apresentado sugere um encaminhamento para fraudes constitucionais (paradoxalmente) encetadas por governos eleitos. Não se oferece opção ao modelo constitucional, que protege os direitos humanos; a proposta é só subverter e inferiorizar as Constituições para fazer consagrar objetivos no mais das vezes inenarráveis.
Na base do problema está a circunstância de Constituições estarem sempre em pé de guerra com, ao menos, duas poderosas forças: a vontade da maioria e a dos aspirantes a ditador. Sim, a Constituição é um instrumento contramajoritário e pretende, em certa medida, conter a vontade da maioria, preservando regras e valores mínimos no interesse de todos. A isso se chama democracia. O melhor exemplo são os direitos humanos, pois estão protegidos para além dos eventuais interesses momentâneos da maioria da sociedade ou de seus representantes eleitos (por leis).
Porém, uma batalha sem precedentes está sendo travada nos EUA -o 11 de Setembro tem servido para "justificar" uma diminuição das liberdades, bastando invocar a expressão mágica (e inconsistente) da "guerra ao terrorismo" como caminho para subjugar a Constituição das liberdades.
Nesse ponto, há um elemento de contato com a segunda e poderosa força contrária às verdadeiras Constituições. É que protótipos de ditadores procuram revestir seu reinado de desrespeito e opressão com o manto pseudoconstitucional. Não por outro motivo, diversos governos pretendem alterar as Constituições conforme seus próprios critérios arbitrários. É o que ficou consagrado na expressão cunhada por Paulo Bonavides como "ditaduras constituintes" ("Tendências/Debates", 4/9/2006).
Ainda nesse sentido, alguns governantes alteram o "espírito" da Constituição sem mudar suas palavras. Bush tem sustentado que o combate ao terror promove o bem de todos e é o único meio de alcançar o mínimo de segurança. A redução das liberdades e o aumento dos poderes do chefe do Executivo estariam legitimados por essa releitura unilateral e arbitrária da Constituição dos EUA.
Enganam-se, pois, os que acreditam estarmos ante uma nova modelagem do Estado democrático, de um novo alvorecer, com uma face social mais intensa. Movimentos recentes de combate às Constituições em vigor, com palavras de ordem que repetem antigos chavões, constituem o hino das novas ditaduras, que em nada se diferenciam daquelas outras historicamente conhecidas, a não ser pela vergonha de descumprir escancaradamente a Constituição.
Esta define-se pela perenidade e atitude de absoluta e intransigente defesa dos direitos humanos, no que contém e limita o "poder", defende as liberdades, o Estado social e os direitos dos cidadãos, incluindo os trabalhadores e contribuintes.
Eventuais Constituições alteradas (na palavra ou no "espírito") para fazer as vontades de tiranos de plantão não passam de corpos sem alma, papéis sem valor constitucional. Que datas comemorativas como os 20 anos possam servir para nos conscientizarmos do verdadeiro "sentimento constitucional".

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