17 janeiro 2008

A MORTE EM VIDA DE JOSÉ DIRCEU

MARCELO COELHO

O modelo do militante é o cadáver de Lênin: na impassibilidade está sua principal virtude

"SAFADO. SA-FA-DO. SA-FA-DO!" Na fila do aeroporto, numa mesa de churrascaria, numa calçada qualquer, José Dirceu se arrisca todo dia a ouvir xingamentos desse tipo.
Na reportagem de Daniela Pinheiro para a última revista "Piauí", o modo com que o ex-deputado encara tais situações talvez seja mais interessante do que as farpas, amplamente divulgadas, que ele lançou contra adversários no PT gaúcho.
O texto, pelo excelente "timing" da narração e pelo tom de absoluta objetividade, merece ser citado mais extensamente. José Dirceu estava na churrascaria "Prazeres da Carne", que costuma freqüentar.
"Comia o segundo pedaço de cupim quando, sem que percebesse, um homem loiro e jovem se aproximou e pôs a mão no seu ombro. Talvez porque imaginasse se tratar de um conhecido, o ex-ministro sorriu quando o homem se inclinou. Com o rosto quase colado ao de Dirceu, entretanto, o desconhecido gritou."
Ouviram-se os impropérios já citados. "O sorriso do ex-ministro se desmanchou e sua expressão facial se esvaziou. Ele não demonstrou surpresa, raiva, medo, constrangimento ou qualquer outra emoção. Ficou olhando impassível, enquanto os berros continuavam."
Dá para intuir, pela reportagem, que tanta impermeabilidade não se construiu num dia. Não era muito diferente a atitude de José Dirceu nos tempos da clandestinidade. "Quando eu voltei para o Brasil", conta, "se alguém gritasse "Zé!" ou "Dirceu" na rua, eu nem olhava. Realmente, me convenci de que era outra pessoa".
Agora, como durante o regime militar, a despersonalização de José Dirceu funciona como um mecanismo de sobrevivência.
Fico pensando, entretanto, se também não foi essa despersonalização um dos fatores de sua desgraça política. Quem assistiu pela TV Câmara à sessão em que José Dirceu foi cassado certamente se lembra do tom quase burocrático do discurso em que tentou se defender.
Não digo que, se tivesse chorado, poderia ter escapado da perda do mandato. Mas um espetáculo mais emotivo naquela ocasião talvez diminuísse a virulência dos xingamentos que até hoje ele ouve.
É como se José Dirceu não tivesse sofrido demais com tudo o que aconteceu. Mesmo um "safado", para usar os termos do rapaz da churrascaria, pode estrebuchar quando punido.
Mas, aparentemente, a lógica por trás do comportamento de José Dirceu é de outro tipo. Está em curso a velha psicologia do militante bolchevique. Funcionário disciplinado do partido, cumpre-lhe assumir ou negar culpas, tanto faz, conforme o que lhe ditarem os interesses da revolução. Não existe fora da "causa", e o rumo da história, com "h" maiúsculo, é o único tribunal que merece o seu respeito.
No centro do poder ou fora dele, o militante continua a ter uma vida clandestina: a preservação dos segredos de Estado e o ocultamento prudente da existência privada tendem a ser duas faces de uma mesma moeda.
O modelo do militante é o cadáver embalsamado de Lênin na praça Vermelha: na impassibilidade está sua principal virtude.
As "grandes causas", evidentemente, desapareceram do horizonte; os interesses, contudo, persistem: a intermediação de negócios com empresários portugueses ou mexicanos, interessados em investir seu dinheiro no Brasil, ocupa a agenda do ex-deputado.
Curiosamente, a reportagem de "Piauí" assinala alguns momentos em que a subjetividade de José Dirceu ainda sobrevive sob o rigor tanatológico com que ele atravessa a existência.
Ele não vive sem creme hidratante, desmente usar botox, mas recorre a um miraculoso preparado anti-rugas feito em Cuba. Também se submeteu, faz pouco tempo, a um implante de cabelo. A respeito de Garibaldi Alves, o novo presidente do Senado, José Dirceu prevê que em breve irá a um ortodontista.
"Ele era lindo de morrer", exclama Daniela Pinheiro ao ver as fotos de José Dirceu nos idos de 1968. Natural que não queira ficar velho. Mas esse traço de fragilidade humana no ex-ministro vem na verdade confirmar, e não desmentir, as hipóteses que arrisquei sobre sua psicologia.
Brejnev, por exemplo, pintava o cabelo. Quem pensava ter o curso da história nas mãos não podia ser dominado pela corrosão do tempo. Fazer-se de morto é, algumas vezes, o mais poderoso elixir da longa vida. José Dirceu continua assustador.


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Só uma pergunta: será que José Dirceu sente vergonha?!

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