JANIO DE FREITAS
Ronaldo Cunha Lima usou como arma o direito de ser confessadamente criminoso e inalcançável por punição da Justiça
Se o golpe de esperteza do ex-governador, ex-senador e agora ex-deputado Ronaldo Cunha Lima, para escapar ao julgamento por feroz tentativa de assassinato, foi - como diz o ministro Joaquim Barbosa - "um escárnio com a Justiça", antes desse há outro mais grave, porque escárnio da própria lei com cada eleitor e contra todo o país.
Ronaldo Cunha Lima, então governador da Paraíba, atacou a tiros uma pessoa indefesa, a quem acabara de ver, por acaso, em um restaurante. Era seu antecessor, Tarcísio Burity, que levou um tiro no rosto e dois no corpo, com seqüelas que o acompanharam desde aquele dezembro de 93 até a morte dez anos depois. Como era de esperar, a Assembléia Legislativa da Paraíba negou autorização para processo criminal contra o governador.
Eleito senador, Cunha Lima evitou o processo nas instâncias normais, mas teve que se sujeitar a processo aberto, em 95, no Supremo Tribunal Federal: é o que permite o foro privilegiado para parlamentares, no país em que "todos são iguais perante a lei".
De então até agora, quando o processo chegou à pauta de julgamentos, foram 12 anos. Que legislação de processo penal e regimentos são esses que, em um só tribunal, podem tardar tantos anos para cumprir sua finalidade de "fazer justiça"? Com isso, Ronaldo Cunha Lima, que fez tudo de que a sua incompetência foi capaz para matar uma pessoa indefesa, tem a liberdade assegurada para sempre. Bastou-lhe renunciar ao mandato de deputado e, portanto, ao foro privilegiado. O processo vai para as instâncias normais, na Paraíba onde o filho e motivo do crime é governador, logo, aos 71 anos, Cunha Lima sabe que chegará a idade impunível antes que o processo pudesse dar em julgamento.
Mas o "escárnio com a Justiça brasileira", como reagiu o ministro do Supremo, é incerto. Dessa vez, Cunha Lima usou como arma o direito que a legislação processual e a do foro privilegiado lhe deram: o interessante direito de ser confessadamente criminoso, com numerosas testemunhas do crime, e inalcançável por punição da chamada Justiça. Escárnio sem dúvida, um deboche cínico lançado a todos nós, foi o dos senadores que saudaram o truque de esperteza de Cunha Lima e, nas palavras do líder do PSDB, Arthur Virgílio, "as razões nobres que o motivaram". Nobres como os "nobres senadores"?
Antes de tudo isso, porém, há outra preciosidade do lixo legislativo que os identificados com Cunha Lima têm guardado com zelo, muitos deles em benefício próprio, outros por precaução. A legislação eleitoral é mudada quase que a cada eleição, sem jamais restringir o registro de candidatos com problemas policiais ou judiciais graves. O mandato, assim, é um refúgio remunerado e repleto de privilégios. Em vez de proteger possíveis candidatos contra artifícios persecutórios, protege contra processos justificados. Além de outros, foi o que levou Cunha Lima ao Senado, depois à Câmara e, no seu caso, afinal à liberdade tranqüila. Outros ficam se reelegendo, apenas.
O Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio, que já foi palco de algumas das mais deploráveis atitudes eleitoralmente antidemocráticas, decidiu enfrentar, entre outras providências, a permissividade desregrada de registros de candidatos. Para as eleições do ano que vem, está estendida a determinação ensaiada na eleição do ano passado: os juizes eleitorais devem negar o registro a pretensos candidatos com processos criminais.
"Não haverá prejulgamento, mas quem quiser recorrer terá de vir ao TRE e só depois ao TSE. É preciso que o político tenha moralidade para o exercício do mandato." Nestas palavras do desembargador Roberto Wider e na decisão do TRE-RJ está o que bem poderia tornar-se norma de todos os TREs. Ainda mais nestes tempos de tribunais decididos a suprir o que considerem "omissões" do Congresso. Mas na Paraíba, por exemplo, não é imaginável que Ronaldo Cunha Lima seja impedido de candidatar-se, caso deseje mais privilégios. Na legislação eleitoral, antes da moralidade vêm as conveniências políticas e pessoais.
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