18 fevereiro 2008

O DONO DO DINHEIRO

FERREIRA GULLAR

O problema está no uso que os detentores dos cartões, simples funcionários ou ministros, fazem deles

O caso dos cartões corporativos - o novo escândalo que envolve o governo de Lula já comentado e analisado por toda a imprensa - me faz lembrar a frase de um espertalhão que a polícia gravara. Reivindicando, para si, uma parte maior dos recursos públicos que estava roubando, argumentou: "Esse dinheiro não tem dono".
Tal argumento, embora falso, contém certa dose de verdade, se não em seu conteúdo essencial, mas no entendimento implícito de como é visto o bem público por boa parte dos que lidam com ele: não é teu, não é meu, é nosso.
É óbvio que o dinheiro é do povo. Mas quem é o povo? Aquela gente nordestina, magricela, tostada de sol, que mal sabe falar? Os funcionários dos supermercados, os feirantes, os choferes de caminhão que cruzam o país, tontos de sono e que nem jornais lêem? Perguntem a eles quantos ministérios tem o governo atual e para que serve a secretária especial de Promoção da Igualdade Racial e a resposta será um sorriso encabulado de quem não entende a pergunta nem nunca ouviu falar de tais coisas. Se são eles os donos de bilhões e bilhões de reais que o governo recolhe com os impostos, não deve nos causar surpresa a citada frase daquele espertalhão.
Os cartões corporativos foram criados com o propósito de melhor viabilizar pequenas despesas e facilitar o controle desses gastos. Nada contra. O problema, como sempre, está no uso que os detentores desses cartões -sejam simples funcionários ou ministros- fazem deles. E isso depende da opinião que se tenha sobre o mencionado ponto: essa grana tem dono ou não? A resposta a tal pergunta será uma ou outra, conforme o grau de consciência que os detentores dos cartões tenham da coisa pública. E esse grau de consciência, no Brasil, não parece muito alto nem muito comum, do contrário não nos depararíamos com os abusos que os jornais noticiaram.
Cartão de crédito, como se sabe, é um troço diabólico, porque faz o cara pensar que pode gastar à vontade, sem limites; isso quando o cartão é dele, o que significa que, amanhã ou depois, terá que pagar a conta. Imagine agora se lhe põem nas mãos um cartão que lhe permite gastar dinheiro que não é seu e, aliás, não tem dono? É tentação demais, mesmo para um ministro ou um secretário especial da Pesca!
Veja como é difícil resistir à tentação: esse secretário da Pesca, estando em Ribeirão Preto, entrou na choperia Pingüim e bebeu R$ 70 de chopes; depois, no Carnaval de 2007, veio para o Rio, hospedou-se no hotel Glória e, entre hospedagem, bebidas e churrascos, gastou quase R$ 800, mas alega que estava a trabalho; cara dedicado, esse, trabalhando duro em pleno Carnaval carioca! Já o ministro dos Esportes, entre Rio e São Paulo, gastou só em comida R$ 1.500, mas tais despesas não se comparam com as da ex-ministra da Igualdade Racial: R$ 171.500 com táxis, sendo que, desse montante, R$ 122 mil foram pagos a uma só locadora de automóveis. É a farra do boi, para me valer da expressão usada pelo presidente Lula em outra ocasião; sobre a farra de agora, nenhuma palavra, mas a ministra Matilde, ele demitiu, coerente com sua tática de evitar contaminações.
O caso, porém, mais representativo dessa relação obscena com o dinheiro público é o da reitoria da Universidade de Brasília, que usou recursos da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), no total de R$ 470 mil (preço de um bom apartamento de três quartos em Copacabana) para equipar o apartamento funcional em que reside o reitor. Conforme dados oficiais, a Finatec comprou, em fevereiro de 2007, um saca-rolhas por R$ 859 (preço de uma máquina de lavar), um abridor de latas por R$ 199, um liquidificador por R$ 499, além de 108 taças de vinho e copos no valor de R$ 4.140. Acrescentem-se três lixeiras, pelo valor de total de R$ 2.783, e ainda um fogão que custou R$ 7.100, quando, em qualquer loja, um fogão de seis bocas custa R$ 1.400. Quantas bocas terá, então, esse fogão do apartamento do reitor?
A propósito desses gastos, um funcionário da reitoria da UnB alegou que a compra de tais utensílios corresponde à importância do cargo de reitor. É o mesmo raciocínio que leva à construção de verdadeiros palácios para abrigar órgãos públicos e a reservar, para um ministro, um gabinete de 46 m2. É o Brasil da ostentação e da insensibilidade, que nada tem a ver com o Brasil de verdade, dos hospitais que não funcionam, das estradas esburacadas, das escolas sem professores e das penitenciárias superlotadas. O Brasil real, onde vive o povo, o dono do dinheiro.


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Cadê o dono do dinheiro?!

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