21 fevereiro 2008

"ME LARGA!" (e me abraça!)

CONTARDO CALLIGARIS

As separações são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro

Às vezes, milagrosamente, um psicanalista consegue transmitir os resultados de sua experiência clínica do jeito certo: sem simplificar, mas sendo mais cuidadoso com o leitor leigo do que preocupado em impressionar a turma dos colegas.
É o caso do livro de Marcel Rufo, "Me Larga! Separar-se para Crescer", recentemente traduzido em português pela Martins Fontes.
Rufo, 62, francês, terapeuta de crianças e adolescentes, segue passo a passo as peregrinações pelas quais o indivíduo conquista sua autonomia, ou seja, o difícil caminho que leva da fusão inicial com a mãe à independência rebelde do adolescente.
Ao longo do percurso, ele apresenta inúmeras vinhetas clínicas: crianças agressivas, infelizes na escola, com enuresia, pré-adolescentes adotados ou que se imaginam sê-lo, outros que fogem sem parar, jovens que se drogam ou querem acabar com sua vida, assim como pais que largam os filhos cedo demais e outros que não os largam nunca.
Mas "Me Larga!" não é apenas um livro para pais e filhos sobre as dores do crescimento. A leitura é, para qualquer um, uma ocasião imperdível para refletir um pouco sobre o conflito (que nunca pára de nos assolar) entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência -conflito especialmente complicado, aliás, porque ele se repete dentro de cada um dos campos que nele se enfrentam: o amparo da dependência é também o porto seguro que (mesmo remoto e fantasiado) nos dá a força de continuar navegando para o largo, e não há liberdade sem a nostalgia de um lar que nos prenderia.
Como escreve Rufo: "Prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente". E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranqüilizar às vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo".
Ou seja: a solução do conflito entre dependência e autonomia nunca é definitiva e é um paradoxo. Como é possível encontrar amarras que nos libertem?
Em suma, o conflito entre nossa necessidade de amparo e apego e, do outro lado, nossa sede de separação e independência é central na constituição de nossa subjetividade e continua crucial durante a vida toda. Sugiro um exemplo.
Em geral, atribuímos tanto os apaixonamentos quantos as separações de nossa vida amorosa ao outro, que se revela, segundo os casos, sublime, incompetente ou sacana. Ou então, às circunstâncias, facilitadoras ou infelizes. Mas talvez os percalços de nossa vida amorosa sejam decididos por uma luta que se trava dentro de nós e que pouco tem a ver com as qualidades e os defeitos do outro ou com as adversidades do mundo.
Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez. Prova disso?
Primeiro, obviamente, pense nas separações, por assim dizer, "abstratas": aquelas que acontecem em razão de um surto irresistível de independência num dos dois ou em ambos e, inversamente, naquelas que são maneiras de manter o conforto de outro apego: "Gosto de você, mas me largue, porque você me leva para liberdade demais; prefiro ficar aqui no quentinho".
Logo, lendo o livro de Rufo, é fácil reencontrar as modalidades da ruptura amorosa na lista dos percalços das separações pelas quais a criança conquista sua autonomia: separar-se para não ser abandonado, separar-se para crescer e medir o alcance de nossa liberdade, separar-se para testar o outro, para verificar que ele não nos deixará por isso, e por aí vai.
É como se os altos e baixos de nossa vida amorosa fossem, antes de mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está em nosso âmago e nunca se resolve.
À primeira vista, muitos acharão essa idéia incongruente com sua experiência. Mas, antes de descartá-la, façam o seguinte. Depois de uma separação, quando os "erros" e as "falhas" do outro se afastaram um pouco na memória e começam a parecer irrelevantes, pergunte-se, por exemplo: "Mas, afinal, por que nós nos separamos?" Na maioria dos casos, a gente não sabe responder.

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