Lya Luft
"Ando cansada de espreitar da janela de meu carro para ver se o carro vizinho me aponta a metralhadora ou se é apenas um conhecido me cumprimentando"
Houve um tempo em que o sonho da maioria das pessoas era morar numa casa em rua calma e arborizada. Hoje queremos edifício em rua movimentada e... sorte em relação à violência, que chega cada dia mais perto. Na minha infância (leia-se década de 40), a primeira violência de que tive notícia foi o assassinato de um motorista de táxi. Táxi, chamado então, se não me engano, de carro de praça, era raramente usado. Os motoristas eram pois personagens conhecidos da gente. Aquele foi enforcado por bandidos, depois colocado no porta-malas do seu carro e levado pela cidade enquanto eles iam para a "zona" – lugar obscuro para uma criança de então, que os adultos evitavam explicar criando mais confusão –, bares e outros. Muitas noites insones passei, apavorada, no escuro, imaginando aquele defunto ambulante. Alguém comentou que ele tinha grandes olhos azuis e risada alegre. Aquele morto no seu porta-malas povoou muitas noites insones da criança que fui, ele e eu de olhos arregalados no escuro. Hoje, notícias de violência fazem parte do cotidiano de meus netos e netas, por mais sossegada e protegida que seja a sua vida. Mesmo numa cidade não tão grande nem perigosa como Rio e São Paulo, jornal, noticiosos de TV e rua de bairro são cenário de assalto, medo e morte. E nem nos ocorre deixar que essas crianças façam o que seus pais faziam nesse mesmo bairro: andar de bicicleta na calçada, jogar futebol em terreno baldio, brincar na rua, ir a pé para a escola, pegar ônibus para ir ao centro.
Homens bem vestidos, metralhadoras modernas e granadas de mão invadem condomínios aparentemente seguros. Temos de um lado os marginais, de outro os chiques: o terror cada vez mais perto. Onde as autoridades redescobrem seu poder e sua função, essas organizações começam a ser desmanteladas, mas é um trabalho duro e complexo.
Se tivesse recursos (escrever livro não dá para tais luxos), eu colocaria segurança na porta de cada uma das pessoas que amo, ainda que nenhuma delas possua algo que possa atrair bandidos. E, se tivesse filhos solteiros, faria o que nunca fiz quando os tinha em casa: só dormiria quando todos estivessem salvos debaixo do nosso teto. O morto no escuro do porta-malas talvez nem me assustasse se eu fosse criança hoje. Vivemos a banalização da morte absurda. Neste país a cada semana morrem várias dezenas de civis inocentes e policiais corajosos. Aqui se morre mais do que na Guerra do Iraque, tantos jovens são assassinados que em breve seremos um país de velhos.
Estou cansada do medo generalizado que vai disseminando uma generalizada tristeza. Cansada de espreitar da janela do meu carro para ver se do carro vizinho me apontam a metralhadora ou se é apenas um conhecido me cumprimentando. Cansada de não saber se o menino pedinte tem na mão uma navalha, se o carro atrás do meu não vai me fechar ali adiante, se... se... se... Não vivo em pânico, apesar do que escrevo aqui. Não sou particularmente covarde. Nem singularmente ousada. Sou uma mulher comum que já viveu bastante, viu bastante, mas nada que de longe se pareça com o que hoje experimentamos, nas cidades grandes e pequenas: a violência cada vez mais perto.
A bela idéia de colocar 700 cruzes na Praia de Copacabana simbolizando os mortos por violência no Rio em apenas alguns dias devia ser repetida por todo o país. Em praias, praças, ruas, parques. Lá estariam, vigilantes, as vítimas dessas mortes tão evitáveis, a nos alertar de que, com vontade real de acabar com essa guerra civil, o terror sem remédio terá remédio. Educação, emprego, aconselhamento familiar, controle muito maior das drogas, leis mais severas, polícia mais valorizada, autoridade firme e corajosa, determinação de todos e menos palavrório.
Ou logo nos crescerão orelhas e rabos: com focinho trêmulo e olhinhos assustados, seremos ratos apavorados disparando pelas ruas, entrando sorrateiramente nos edifícios e casas, espiando o mundo através de grades e olhos mágicos, organizando nossos lares como minishoppings dos quais só se sai por obrigação: com comida pré-pronta, diversão cibernética, amizades idem, e lá fora uma trágica paisagem de cruzes.
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