29 março 2007

"ELES SÃO UNS BOBÕES"

Hélio Schwartsman

Ele é branquinho, felpudinho e fofinho. Basta ver uma das inúmeras fotografias divulgadas pelo zoológico de Berlim para apaixonar-se por ele. Falo de Knut, o filhote de urso polar que, depois de ter sido rejeitado pela mãe e quase morrer, foi "adotado" por funcionários do zôo e acabou sobrevivendo. A saga de Knut cativou a Alemanha e mundo. Bem, nem todos. O ativista de direitos dos animais Frank Albrecht declarou ao jornal "Bild" - 3,8 milhões de exemplares diários - que o fato de o ursinho estar sendo criado por humanos era uma aberração e que o animal deveria ser sacrificado.

Foi um qüiproquó. Protestos surgiram imediatamente de todos os lugares. O ursinho, que já era uma sensação em Berlim - já fora fotografado por Annie Leibovitz -, tornou-se uma celebridade mundial. Ele recebeu até a visita do premiê italiano Romano Prodi, que fez questão de encaixar o bichinho na agenda de sua visita a Berlim por ocasião do cinqüentenário do bloco europeu. São agora absolutamente nulas as chances de Knut receber a injeção letal sugerida por Albrecht. Na verdade, agora é o ativista quem tem recebido ameaças de morte.

Vale a pena analisar mais de perto a epopéia do ursinho. Ela produziu uma série de paradoxos que oferecem farto material para reflexão.

Knut nasceu de parto gemelar no dia 5 de dezembro de 2006. Ele e seu irmão, porém, foram rejeitados pela mãe, Tosca, que "trabalhara" como ursa amestrada num circo da antiga Alemanha Oriental. (Esses comunistas nunca me enganaram; seu plano maligno sempre foi o de destruir a família!). O gêmeo de nosso pequeno herói faleceu quatro dias depois de ter vislumbrado o mundo.

Knut, entre a vida e a morte, foi metido numa incubadeira onde permaneceu por 44 dias. Tendo superado a fase crítica, passou a ser alimentado com uma mamadeira e a dormir com os tratadores.

Acho que foi dessa promiscuidade que Albrecht não gostou. "Criá-lo com mãos humanas não é apropriado para a espécie, mas uma flagrante violação das leis de proteção aos animais", disse. Segundo o ativista essa forma de tratamento deixará o urso com distúrbios comportamentais pelo resto de sua vida. "Na verdade, o zôo precisa matar o filhote", concluiu. Foi o que bastou para o sensacionalista "Bild" estampar como manchete de sua edição de 19 de março: "O doce Knut será morto com uma injeção letal?".

Não é todo dia que se vê um defensor dos animais advogando pela eutanásia de um filhote saudável. Tal contradição não passou despercebida nem de criancinhas. "Eu achava que ativistas de direitos dos animais protegiam animais e não que quisessem matá-los", disse ao "Bild" Alexander, 4, que participava de uma manifestação pela vida de Knut no zôo de Berlim na quinta-feira passada. "Eles são mesmo uns bobões", acrescentou.

A proposta de Albrecht, apesar de ter recebido generalizado opróbrio, não chega a ser o avesso de uma unanimidade. Wolfram Graf-Rudolf, diretor do zoológico de Aachen, concorda em parte com o ativista. "Não acho apropriado para a espécie a criação na mamadeira", disse ao jornal. De acordo com Graf-Rudolf, o animal desenvolverá uma fixação pelo tratador e não será um urso polar "real". O diretor, porém, considera que já é tarde demais para sacrificar Knut.

Há quem chegue mesmo às vias de fato. No final do ano passado, Hugo, um filhote de preguiça também rejeitado pela mãe foi morto com uma injeção letal no zoológico de Leipzig.

Antes que me acusem de conspirar para assassinar o doce Knut, alerto que não concordo com Albrecht. Valho-me de critérios puramente utilitaristas. Os tratadores do zôo, os berlinenses e boa parte da opinião pública pública ocidental - além, é claro, do próprio Knut - parecem estar mais felizes com o ursinho vivo do que morto. Não sou eu, portanto, quem vai se opor a tanto amor inter-espécies. Podemos ir um pouco mais longe e admitir, como o ativista afirma, que a "educação" que o animalzinho está recebendo render-lhe-á problemas psiquiátricos. Qual é o mal? Quer dizer, será que futuras dificuldades de adaptação de um indivíduo justificariam sua não-existência ou seu "assassinato"? Não é melhor estar vivo e sofrer um pouco do que simplesmente não existir e, portanto, jamais experimentar nem a dor nem o prazer?

Não tenho evidentemente uma resposta para essa última pergunta, mas acho que nossos instintos mais do que a razão nos levam a preferir quase sempre a primeira opção. A equação só costuma inverter-se em casos relativamente raros nos quais o sofrimento psíquico ou físico supera qualquer possibilidade de alegria e torna o simples fato de permanecer vivo um martírio.

(Vale aqui a pena abrir um parêntese a respeito da diferença entre veterinários e médicos. Enquanto os primeiros raramente hesitam antes de abreviar o sofrimento de um bicho gravemente enfermo, os segundos, também por força da lei, raramente o fazem. Das duas uma: ou o tratamento que dispensamos aos animais é, por assim dizer, desumano; ou são nossos homólogos hominídeos que não vêm recebendo os cuidados finais como deveriam. Como nunca vi alma alguma insurgir-se contra a eutanásia de animais, fico com a segunda opção. Novo paradoxo: pelo menos nos momentos finais, recusamos a nossos semelhantes tratamento que nos vangloriamos de dar até a cães).

Voltando ao doce Knut, não me parece que ele enfrente ou virá a enfrentar suplícios por conta da "adoção". Dificuldades de relacionamento não tendem a ser um problema grave para animais que passam a maior parte de sua vida adulta em completa solidão, como é o caso do Ursus maritimus macho. Muito menos para exemplares de zoológico, que já vivem em condições bastante diversas daquelas prevalecentes em seu habitat original.

Quem é então a vítima no suposto crime que o zôo de Berlim teria cometido ao salvar Knut? Albrecht fala da "flagrante violação às leis de proteção aos animais" ("Tierschutzgesetz"). Graf-Rudolf, numa colocação que evoca Heidegger, menciona o que seria uma espécie de "ser autêntico" dos ursos polares. Pode-se inferir daí que a parte lesada seria ninguém menos do que a mãe-natureza, aquela à qual cada um de nós, gotinhas de vida na imensidão do universo, deve prestar totais lealdade e obediência.

Lamento decepcionar os defensores dessa edificante cosmovisão, mas o que chamamos de natureza não passa de uma abstração humana, sem correspondência no mundo real. A natureza compreendida como uma ordem que paira acima dos seres vivos atribuindo-lhes um "télos" e submetendo-os a um conjunto de normas simplesmente não existe.

Se quisermos, vigora no mundo natural uma única regra - e tautológica: para fazer parte da natureza é preciso estar na natureza. Ela pode ser traduzida de forma mais econômica com um simples: o que importa é sobreviver.

Em termos evolutivos é absolutamente irrelevante se vivemos ou não como nossos ancestrais, se somos ou não autênticos, se "trapaceamos" ou não recebendo auxílio de tratadores de zôo ou de ETs pendurados em OVNIs, se fazemos ou não papel de palhaços em jardins zoológicos, circos ou templos. Desde que consigamos chegar à maturidade sexual e tenhamos a chance de empurrar nossos genes por mais uma geração, estamos no jogo. E tudo o que há é o jogo para jogar. A rigor, nós mesmos tomados como indivíduos sensientes somos meros "acidentes", não passando de "máquinas de sobrevivência" através das quais genes se perpetuam, como bem descreveu o biólogo Richard Dawkins em seu já clássico "O Gene Egoísta". Se temos ou não uma consciência, se ela é ou não uma ilusão, tanto faz, desde que obtenhamos sucesso reprodutivo.

Knut pode tornar-se um animal neurótico, quem sabe até um ursideopata forjado em mamadeiras humanas. Isso, entretanto, será totalmente irrelevante se ele chegar à idade adulta e lhe for oferecida uma fêmea para procriar.

Certos discursos de defesa dos animais (não todos, mas boa parte) têm muito mais de religião do que de ciência. Não estou, com isso dizendo que devemos matar todo bicho que encontremos na nossa frente, mas apenas que convém examinar criticamente os argumentos.

E não me parece que possamos erigir uma suposta "ordem natural" em critério de verdade. Freqüentemente, tudo o que desejamos é livrar-nos dessa ordem natural. Não me parece exagero afirmar que a cada uma das conquistas tecnológicas da humanidade nada mais é do que uma forma de "ludibriar" a gentil mãe-natureza, livrando-nos de um fardo por ela imposto e tornando nossa vida em teoria mais confortável. Um exemplo: inventamos a roda porque somos, por natureza, péssimos corredores. Deu certo. (Daí não se segue, é claro, que carros, um desenvolvimento posterior da roda, não possam nos trazer novas dores de cabeça, como congestionamentos e efeito-estufa, mas essa é uma outra história).

É justamente porque a natureza nada tem de sábia que sou contra sacrificar o doce Knut e defendo a utilização dos malvados antibióticos, que assassinam diariamente bilhões de bactérias patogênicas.

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