JANIO DE FREITAS
Conflitiva é a presença de não-índios nas áreas indígenas, e não a demarcação contínua da Raposa/Serra do Sol
A ofensiva contra a efetivação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, passados já três anos de sua homologação e dezenas de outros para que fosse homologada, funda-se mesmo é na velha concepção que há 500 anos trata o índio como ser desprezível e exterminável, ainda hoje aquém dos seres beneficiados pelo recente modismo de defesa da vida animal.
Os argumentos que unem, agora, alguns magistrados do Supremo Tribunal Federal à idosa oposição do Exército às reservas indígenas não são mais convincentes do que os opostos aos Villas Bôas, por mais de 20 anos, na criação da Reserva do Xingu, e aos defensores de outras áreas para os sobreviventes do extermínio.
O próximo presidente do STF, Gilmar Mendes, é objetivo: "A reserva contínua é muito conflitiva. Prefiro discutir o modelo alternativo, de ilhas de reserva indígena. O que não pode é você criar um Estado e depois criar uma reserva que tenha 50% ou 60% do seu tamanho [do Estado]".
A antropologia já deu todas as respostas à sempre repetida pregação, em todos os casos de projetos de reservas, de divisão das áreas necessárias à sobrevivência biológica e cultural do indígena em vida tribal. Conflitiva, porém, não é a continuidade ininterrupta de Raposa/Serra do Sol ou de qualquer reserva, é a presença de ocupantes não-indígenas das áreas indígenas. Ocupantes, quase sem exceção, por invasões ou por compra a invasores de terras da União e do respectivo Estado. Para extração ilegal de madeiras nobres, desmatamento para pastagens e agricultura extensiva como soja e arroz, entre outras, e para garimpo e várias explorações minerais.
Demarcada no governo Fernando Henrique e homologada no governo Lula, a área para Raposa/Serra do Sol não ocupa 50% ou 60% do Estado de Roraima. É um recanto no extremo norte, não se interpõe na fluência do território estadual, habitado por 20 mil índios, e cobre apenas 1,67 milhão de hectares em 22,430 milhões de hectares. Logo, 7,4% do território. Mas, de qualquer modo, ainda que uma reserva ocupe metade de território estadual, para preservar riquezas em bens naturais e em vidas humanas, por que não deveria existir? Ainda mais em um país do tamanho brasileiro?
A perda de parte de um Estado não é necessariamente negativa e tampouco seria novidade. O ministro Gilmar Mendes é natural do ex-Mato Grosso, hoje dividido quase meio a meio em dois novos Estados. Goiás gerou, com quase metade, o também recente Tocantins. Roraima, Rondônia, Amapá são outros desmembramentos. A rigor, todos os limites provêm de seccionamentos territoriais, por diferentes motivos. E não há dúvida de que, do ponto de vista administrativo, as dimensões dos Estados do Norte e do Centro-Oeste foram um dos motivos da permanente insuficiência dos governos para provê-los, no mínimo, do fundamental.
A oposição do Exército considera que a reserva expõe a fronteira a invasões e à perda de soberania do Brasil sobre parte do seu território. Se o único trecho da fronteira norte, para não falar das fronteiras oeste e noroeste, aberto a invasores fosse o correspondente a Raposa/Serra do Sol, ainda assim o argumento seria frágil. Porque o Brasil não cede sua soberania ao conceder uma reserva indígena, assim como não o faz com reservas florestais e marinhas. Reservas não impedem nem desobrigam as Forças Armadas de zelarem, como possam, pelas fronteiras e pelo território. Não têm podido muito, ou têm podido muito pouco, mas não por causa de reservas próximas ou em fronteiras.
Uma reserva é menos fechada à entrada de militares do que as inúmeras propriedades privadas, inclusive estrangeiras, que percorrem o território brasileiro nas fronteiras. E não são vistas como portas abertas a invasões. Não são habitadas por indígenas. Há propriedades fundiárias, mesmo estrangeiras, que ocupam municípios. Não são áreas indígenas. Então, não há problema de descontinuidade territorial, de soberania, de tamanho da área -não há problema, ponto. Há 500 anos.
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