J.R. Guzzo
"Nenhuma menção foi feita pelo presidente, enfim, ao fato de que Severino, após renunciar, tentou voltar à Câmara nas eleições de 2006. Não poderia haver oportunidade melhor para o povo de Pernambuco, com a força do voto livre e secreto, corrigir a injustiça feita pela elite de São Paulo e do Paraná, dando um novo mandato ao ex-deputado. Mas o povo de Pernambuco não quis dar um novo mandato ao ex-deputado"
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chefiou na semana passada, numa visita a Pernambuco, um desses eventos que mantêm o Brasil entre os primeiros colocados do mundo em termos de ISH, ou Índice de Subdesenvolvimento Humano, no exercício do governo. Mais uma vez, foi seguido à risca o Manual das Piores Práticas em vigor na política brasileira: platéia formada por gente humilde, recompensada com um lanche para bater palmas e entregue ao pé do palanque por ônibus fretados com o dinheiro de prefeituras amigas. Junto ao presidente, no coreto reservado às autoridades, estava o habitual cordão dos puxadores de aplauso. Até aí, tudo de acordo com o procedimento-padrão que garante, desde sempre, o atraso na vida política do Brasil, e que conta com a entusiasmada adesão do governo atual. Mas o presidente da República, nessa ocasião, resolveu compartilhar com o público algo que ninguém sabia até agora. Segundo ele, o ex-presidente da Câmara e ex-deputado pernambucano Severino Cavalcanti, presente na platéia, perdeu a presidência e o mandato, em setembro de 2005, por ter ficado amigo do governo, em vez de unir-se à oposição. Mais: quem fez isso foram as elites de São Paulo e do Paraná. Do Paraná, também? Foi o que Lula falou.
Ninguém sabia disso, naturalmente, porque não foi isso que aconteceu. O ex-deputado não perdeu nem uma coisa nem outra por ter ficado amigo de Lula; perdeu ambas porque foi acusado, com o apoio de um cheque entregue a sua secretária, de extorquir 10.000 reais por mês do então concessionário do restaurante da Câmara. Severino não explicou o que fez. Renunciou ao cargo e ao mandato para escapar da cassação, depois que um discurso do deputado Fernando Gabeira, no qual foi descrito como "um desastre" para a Casa, o pôs para correr dali. Severino pode ser, como diz o presidente Lula, uma grande figura humana, mas não foi vítima de um ato de perseguição; foi vítima do que ele próprio, e mais ninguém, fez. Não se imagina o que a elite de São Paulo e menos ainda a do Paraná – por motivos desconhecidos, dessa vez sobrou para o Paraná – tenham a ver com isso. É difícil, também, culpar a direita pela renúncia do ex-deputado. Se alguém pode ser considerado, nessa história toda, como uma liderança na maré de indignação que surgiu com a denúncia, esse alguém é o deputado Gabeira. E o deputado Gabeira, por mais boa vontade que se tenha com Lula, seu governo e Severino, não é um político de direita. Não haveria nada de errado se fosse, mas ele simplesmente não é – e tem todos os atos do seu passado e do seu presente para atestar isso. Da elite paulista (ou paranaense), Gabeira certamente também não é. Talvez seja da elite, genérico que o governo costuma utilizar contra todas as pessoas de quem não gosta, mas nesse caso seria da elite de Minas Gerais, onde nasceu, ou do Rio de Janeiro, onde vive e faz sua carreira política. Nenhuma menção foi feita pelo presidente, enfim, ao fato de que Severino, após renunciar, tentou voltar à Câmara nas eleições de 2006. Não poderia haver oportunidade melhor para o povo de Pernambuco, com a força do voto livre e secreto, corrigir a injustiça feita pela elite de São Paulo e do Paraná, dando um novo mandato ao ex-deputado. Mas o povo de Pernambuco não quis dar um novo mandato ao ex-deputado. Quem é o culpado, então, por ele continuar fora da Câmara?
O presidente não parece preocupado com observações desse tipo; passa a impressão, ao contrário, de estar cada vez mais indiferente aos fatos, quando se lança em discursos como o da semana passada. Tanto faz, para ele, dizer que o baralho tem cinco naipes ou que o ângulo reto ferve a 90 graus – tudo serve, desde que acredite estar fazendo bonito com suas performances no palanque. É esquisito, também, que em todas as acusações de corrupção e de má conduta feitas nos últimos cinco anos Lula tenha tido até agora dois, e só dois, tipos de reação: ou fica em silêncio ou fica a favor do acusado. Toda a sua revolta cívica, em cada um desses casos, se dirige contra os autores das denúncias e contra a oposição em geral – que teve direito, no espetáculo de Pernambuco, de ouvir do presidente que não vai ganhar, de jeito nenhum, as eleições de 2010.
Seria de imaginar que Lula, a esta altura, estivesse um pouco mais calmo. Os resultados do seu governo, na economia, são os melhores que o Brasil vê há muitos anos. Sua popularidade, segundo todas as pesquisas de opinião, continua brilhante. Quanto aos adversários, enfim, não poderia haver oposição mais zen que a atual. Os seus principais líderes, os governadores Aécio Neves, de Minas Gerais, e José Serra, de São Paulo, só se opõem entre si mesmos e fazem todos os malabarismos possíveis para demonstrar que são compreensivos e amigáveis em relação ao governo; comparado a eles, o Dalai-Lama parece um criador de caso. Nada disso adianta. Em vez de relaxar, o presidente fica cada vez mais irado. Por que será?
Lula deve saber o que está fazendo. Espera-se, francamente, que saiba mesmo – porque, se ele não souber, com certeza ninguém mais sabe.
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