Em seu novo livro, o psiquiatra Flávio Gikovate defende o triunfo do individualismo nas relações afetivas
Atenção: a entrevista a seguir pode conter cenas fortes para românticos inveterados. Nela, o psiquiatra Flávio Gikovate, 65, prevê o fim da noção atual do amor, que considera uma "imaturidade não resolvida nos seres humanos", e a vitória da individualidade.
Esse é o tema de seu novo livro, "Uma História de Amor...com Final Feliz". Trata-se, na verdade, de dois finais. Um deles aponta para um novo molde das relações afetivas: "O romantismo do século 21 não será mais essa idéia de fusão de duas metades, e sim a aproximação de dois inteiros. Uma coisa mais parecida com a amizade, com mais afinidade intelectual do que física". A outra opção de final feliz, diz, é a solidão -tão temida. Leia trechos da entrevista concedida por Gikovate à Folha.
Folha - A busca por uma fusão com o ser amado é constante em todos os períodos ou nossa idéia atual de amor decorre do movimento romântico dos séculos 18 e 19?
FLÁVIO GIKOVATE - A expressão do amor romântico é ruim, melhor definir amor de forma mais ampla. Desde que nascemos, temos a sensação de ser uma "metade", talvez porque tenha sido assim na origem: passamos a existir fundidos a outro ser -a mãe. O nascer é uma ruptura que gera desamparo. Isso só se atenua com a reaproximação física da mãe.
Amor é o que sentimos por quem atenua nossa sensação de desamparo, e esse remédio varia conforme a época. No clã familiar, o aconchego vinha de muitas fontes. Quando os jovens saíram da área rural, foram afastados do clã. Então, homem e mulher criaram uma aliança intensa só entre eles. Esse amor romântico, que é possessivo, exigente, ciumento e complexo, andava mais ou menos bem até a 2ª Guerra Mundial. Aí se agravou um conflito que, para mim, sempre existiu: aos dois anos, a criança sai do colo da mãe para apreender o mundo. A partir daí, ela se divide entre o amor e seus interesses pessoais. Essa divisão não se resolve nunca.
Folha - Como o movimento romântico nos influencia atualmente?
GIKOVATE - Esse sonho de fusão continua presente. Mas duas coisas modificaram esse ideal: a independência da mulher, desequilibrando a idéia de fusão com uma liderança masculina, e o avanço tecnológico, que criou condições extraordinárias para o entretenimento individual. Hoje, há uma briga muito mais ostensiva entre amor e individualidade.
Folha - Apesar dessa independência, as mulheres ainda são mais associadas ao amor. Por quê?
GIKOVATE - Isso é uma lenda. Talvez elas tenham mais interesse em estabelecer relações estáveis por razões sexuais (não se divertem muito com o sexo sem compromisso) e pela idéia antiquada de que casar pode ser um bom negócio. No dia em que elas fizerem as contas e perceberem que 60% das vagas nas universidades são ocupadas por mulheres, vão repensar isso. Elas sonham com protetor e provedor e com independência. Nesse sentido, muitas são contraditórias.
Folha - Por que, na maioria dos divórcios, a iniciativa é feminina?
GIKOVATE - Porque os casamentos de má qualidade são mais desgastantes para a mulher. Em geral, esse casamento é entre opostos: um egoísta e outro generoso -e há tanto homens como mulheres dos dois tipos. Nas separações por iniciativa feminina, geralmente a mulher generosa ficou de saco cheio do marido folgado. A egoísta não se separa, pois se beneficia da situação. E os maridos generosos não se separam porque não são bons em ficar sozinhos e perdem mais com a separação, como os filhos e a casa.
Folha - O individualismo tem uma conotação pejorativa. Por que valorizá-lo?
GIKOVATE - Individualismo não é egoísmo. O egoísta gosta de turma, porque é aí que encontra um generoso para "mamar na teta". O generoso também não é individualista porque tem a necessidade de dar. O individualismo resolve o dilema entre o egoísmo e a generosidade: é eu me entender como uma unidade e, se eu me sentir desamparado, resolver isso por mim mesmo, e não por meio do outro. Isso não significa não me relacionar, mas o outro deve ser escolhido por afinidade intelectual, como os amigos.
Folha - Se esse encontro não ocorre, é possível ser feliz sozinho?
GIKOVATE - Meu livro tem dois finais: um é ficar sozinho; outro, bem-acompanhado. Ambos representam a vitória da individualidade. Posso jogar tênis sozinho ou em dupla. O que não posso é jogar com um parceiro desleal, ciumento e que queira mandar em mim.Ninguém aceitará gente querendo mandar. Isso não é ser egoísta. O egoísmo se caracteriza pela intolerância à frustração. O independente resolve agüentar suas dores. Além disso, hoje, o mundo é mais favorável a pessoas sozinhas.
Folha - Como o sexo ocorre nesse amor que parece amizade?
GIKOVATE - Isso é um problema porque, em nossa cultura, o sexo vai melhor quando há briga. As pessoas gostam mais de transar com inimigos do que com amigos. Isso mostra como precisamos avançar no entendimento da questão sexual. Ainda é preciso inventar um erotismo que não seja comprometido com vulgaridade e violência. Para superar isso, é preciso ser criativo e entender que as leis da atração sexual não são as mesmas das relações afetivas de boa qualidade. Na hora do sexo, talvez seja necessário mudar o canal, no qual o outro tem de deixar de ser o parceiro sentimental para ser um outro. É assim que os casais que se amam de verdade descobrem estratégias para que o sexo flua.
Uma História de Amor... com Final Feliz
Autor: Flávio Gikovate
Editora: MG Editores
Quanto: R$ 34,40 (168 págs.)
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