Quando o verdadeiro problema são os valores sociais e as leis econômicas, o traficante é o de menos
A maior novidade, e o maior mérito, do filme Tropa de Elite é trazer a figura do consumidor para o centro do problema das drogas e, por conseqüência, da criminalidade, que tem na droga sua maior e mais devastadora causa. Não é só na Zona Sul do Rio de Janeiro que o consumidor tem sido historicamente tratado como a parte mais fraca (coitado, é um viciado) ou inocente (coitado, ele só quer se divertir) do problema. Essa é uma crença que dá volta ao mundo e tem seu epicentro, como quase tudo, no lugar onde as coisas são decididas – Washington. Desde que despertaram para o problema das drogas, sucessivos governos americanos têm dedicado a parte do leão de seus programas, seu dinheiro e suas energias a coibir o tráfico, isto é, o lado da oferta. Ao lado da demanda sobra atenção desprezível, em comparação. Um dos subprodutos desse modo de enfrentar a questão foi a entronização, no imaginário americano, de um estereótipo que estigmatiza todo o subcontinente latino-americano – o do traficante bigodudo, de tez morena e fala castelhana que desencaminha os inocentes rapazes e moças do lado bom das Américas. Não que os traficantes não sejam bandidos. Os rapazes e moças é que não são tão inocentes.
No Brasil, a questão tem seu aspecto mais patético no contraste, muito bem enfocado em Tropa de Elite, entre a alienação chique dos consumidores de droga de Ipanema e a matança nos morros. O filme escancara o óbvio: que existe relação de causa e efeito entre uma coisa e outra. Outros já o fizeram antes, mas não num meio como o cinema, e num filme tão bem-feito e de tanto sucesso. Que sobrou, como linha de defesa dos consumidores? O próprio diretor do filme, José Padilha, lhes tem oferecido – não no filme, mas em entrevistas – uma tábua de salvação: o argumento da liberação das drogas. Se as drogas pudessem ser comercializadas livremente, a violência seria eliminada. Logo, a culpa é da proibição, não dos consumidores. Não vale. Na circunstância, soa como pedido de desculpa de Padilha, por tê-los tratado tão cruamente. Os consumidores brasileiros, ao violar a lei, são tão responsáveis pela violência nos morros quanto os consumidores americanos, muito mais numerosos e ricos, pelas plantações na Bolívia (e, no limite, pela eleição de Evo Morales) e pelo refino e comercialização de cocaína na Colômbia (e, no limite, pela força das Farc). No entanto, num outro plano, independente da questão das responsabilidades pela violência, pergunta-se: haverá solução para a questão das drogas que não seja a liberação?
O filme de Padilha embute um enigma. Se o Bope, a tropa de elite da PM do Rio, é tão bom como ali é retratado, como é que o tráfico nas favelas ainda não foi eliminado? Resposta: o Bope pode até ser melhor ainda do que no filme; a questão é o inimigo que tem diante de si. O inimigo não é o traficante. Ou melhor, só é o traficante na aparência. Inimigos de verdade são duas entidades muito mais difíceis de combater: os valores sociais e as leis econômicas. Em decisivos setores da sociedade ocidental, a brasileira inclusive, há muito a droga é tão aceita quanto os bombons. É admitida em ambientes de fino trato, em que circulam os ricos, os intelectuais e os artistas, e está fortemente implantada na cultura pop, tão influente entre os jovens. Se a maior das condenações, que é a social, vacila, está garantida a formação de um forte mercado consumidor. Ora, não está ao alcance do Bope combater os valores vigentes, muito menos derrotar a lei da oferta e da procura.
Vista desse ângulo, a questão da droga fica parecendo a questão palestina. Esgotada a possibilidade de um eliminar o outro, está mais do que claro que israelenses e palestinos estão condenados a se entender. Quanto antes o fizerem, mais sofrimento e mais vidas pouparão. No caso das drogas também está igualmente claro que, esgotada a possibilidade de eliminar o inimigo, mais dia, menos dia se imporá como única e inevitável a solução de substituir o tráfico pelo comércio à luz do dia. Muito estudo, muito debate e muita reflexão indicarão o modo de fazê-lo, mas desde já um ponto é claro: as decisões terão de ser obrigatoriamente tomadas em foro e âmbito internacionais. Não há como adotar tal medida num país só, muito menos num país periférico como o Brasil, sob pena de condená-lo à condição de estado pária.
O caso é para gente grande, a começar pela maior de todas – os Estados Unidos. Além de não haver questão internacional que possa ser resolvida sem passar por lá, o mercado consumidor americano, como em quase tudo, é o maior do mundo também no item drogas. Ao Brasil, país do mundo talvez mais castigado, depois da Colômbia, pela violência e degradação trazidas pela droga, resta a tarefa de tentar cutucar o mundo. Se sua diplomacia começasse a se mexer, no sentido de sensibilizar as nações mais fortes para o problema, abraçaria uma causa de objetivos mais compreensíveis, e resultados mais palpáveis, do que uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU.
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