17 outubro 2007

CAPITÃO NASCIMENTO BATE NO BONDE DO FOUCAULT

Reinaldo Azevedo


Nunca antes neste país um produto cultural foi objeto de cerco tão covarde como Tropa de Elite, o filme do diretor José Padilha. Os donos dos morros dos cadernos de cultura dos jornais, investidos do papel de aiatolás das utopias permitidas, resolveram incinerá-lo antes que fosse lançado e emitiram a sua fatwa, a sua sentença: "Ele é reacionário e precisa ser destruído". Num programa de TV, um careca, com barba e óculos inteligentes, índices que denunciam um "inteliquitual", sotaque inequívoco de amigo do povo, advertia: "A mensagem é perigosa". Outro, olhar esgazeado, sintaxe trêmula, sonhava: a solução é "descriminar as drogas". E houve quem não resistisse, cravando a palavra mágica: "É de direita". Nem chegaram a dizer se o filme – que é entretenimento, não tratado de sociologia – é bom ou não.

Seqüestrado pelo Bonde do Foucault (já explico o que é isso), Padilha foi libertado pelo povo. A pirataria transformou seu filme num fenômeno. A esquerda intelectual, organizada em bando para assaltar a reputação alheia (como de hábito), já não podia fazer mais nada. Pouco importava o que dissesse ou escrevesse, o filme era um sucesso. Derrotada, restou-lhe arrancar, como veremos, do indivíduo Padilha o que o cineasta Padilha não confessou. Por que tanta fúria? A resposta é simples: Tropa de Elite comete a ousadia de propor um dilema moral e de oferecer uma resposta. Em tempos de triunfo do analfabetismo também moral, é uma ofensa grave.

Qual dilema? Não há como ressuscitar o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), mas podemos consultar a sua obra e então indagar ao consumidor de droga: "Você só pratica ações que possam ser generalizadas?". Ou por outra: "Se todos, na sociedade, seguirem o seu exemplo, o Brasil será um bom lugar para viver?". O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é a sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade. Ele não padece de psicose dialética, uma brotoeja teórica que nasce na esquerda e que faz o bem brotar do mal, e o mal, do bem. Nascimento cultua é o bom paradoxo. Segue a máxima de Lúcio Flávio, um marginal lendário no Brasil, de tempos quase românticos: "Bandido é bandido, polícia é polícia".

A cena do filme já é famosa: numa incursão à favela, o Bope mata um traficante. No grupo de marginais, há um "estudante". Aos safanões, Nascimento lhe pergunta, depois de enfiar a sua cara no abdômen estuporado do cadáver: "Quem matou esse cara?". Com medo, o rapaz engrola uns "não sei, não sei". Alguns tapas na cara depois, acaba respondendo: "Foram vocês". E ouve do capitão a resposta que mais irritou o Bonde do Foucault: "Não! Foi você, seu maconheiro". Nascimento, quem diria?, é um discípulo de Kant. Um pouco desastrado, mas é. A narrativa é sempre pontuada por sua voz em off. Num dado momento, ele faz uma indagação: "Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que o playboy possa enrolar o seu baseado?".

O Bope que aparece no filme de Padilha é incorruptível, mas violento. O principal parceiro de Nascimento chega a desistir de uma ação porque não quer compactuar com seus métodos, que, fica claro, são ilegais. Trata-se de uma mentira torpe a acusação de que o filme faz a apologia da tortura. Ocorre que o ódio que a patrulha ideológica passou a devotar à obra não deriva daí. Isso é pretexto. O que os "playboys" do relativismo rejeitam é a evocação da responsabilidade dos consumidores de droga na tragédia social brasileira. Nascimento invadiu a praia do Posto 9, em Ipanema.

Já empreguei duas vezes a expressão "Bonde do Foucault" para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: "Confesse que você é um reacionário". "Bonde", talvez vocês saibam, é como se chama, no Rio de Janeiro, a ação de bandidos quando decidem agir em conjunto para aterrorizar os cidadãos. Quem já viu Tropa de Elite sabe: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns deles militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de uma aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.

No Brasil, os traficantes de idéias mortas são quase tão perigosos quanto os donos dos morros, como evidenciam nossos livros didáticos. Foucault sempre foi um incompreendido. Por que digo isso? Porque ele era ainda mais picareta do que seus críticos apontaram. No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças. Sim, isso pode ser Foucault, mas Foucault era pior do que isso. Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno. Lixo.

O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário. A seqüência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direito e de todas as transgressões da delinqüência. Por isso o "Bonde do Foucault" da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite. Quem consome droga ilícita põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo. Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver? Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.

Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu. José Padilha e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. Ocorre que era preciso uma reparação. A opinião de ambos – ligeira e mal pensada – favorável à descriminação das drogas ameaçou, num dado momento, sobrepor-se ao próprio filme. Observem: Tropa de Elite trata é da falência de um sistema de segurança em que, segundo Nascimento, um policial "ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra".

A falha desse sistema independe do crime que ele é chamado a reprimir. Se as drogas forem liberadas e aquela falha permanecer, os maus policiais encontrarão outras formas de extorsão e associação com o crime. E esse me parece um aspecto importante do filme, que tem sido negligenciado. Um dos lemas da tropa é "No Bope tem guerreiros que acreditam no Brasil". Esse patriotismo ingênuo e retórico tem fôlego curto: um dos soldados da equipe morre, e seu caixão está coberto com a bandeira brasileira. Solene e desafiador, Nascimento chega ao velório e joga sobre o "auriverde pendão da esperança" a assustadora bandeira do Bope: um crânio fincado por uma espada, atrás do qual se cruzam duas pistolas. Outro dos refrões do grupo pergunta e responde: "Homem de preto, qual é sua missão? / Entrar na favela e deixar corpo no chão / Homem de preto, o que é que você faz? / Eu faço coisas que assustam satanás". Resta evidente que o filme não propõe este Bope como modelo de polícia.

Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico "pegou geral" o Bonde do Foucault.



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É isso aí.

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