24 outubro 2007

IDENTIDADES EM FÚRIA

MARCELO COELHO

As manifestações que têm aparecido na esfera pública estão perdendo o caráter propositivo

Meiose, Mitose, cissiparidade: os nomes eu não lembro direito, mas nas aulas de biologia do colégio o assunto era explicado em detalhes.
Sei que as células se dividem aos poucos, que no começo há uma duplicação dos cromossomos. Guardo a imagem de uns desenhos em que, como forquilhas ou asas de libélula, eles se organizavam em pares.
O núcleo da célula se estendia e só no fim desse processo o citoplasma e a membrana celular se rompiam, criando duas células onde só havia uma.
Nos últimos tempos venho tendo a impressão de que a sociedade brasileira passa por um mecanismo semelhante. Claro, sempre houve divisões entre pobres e ricos, brancos e negros, Sul e Nordeste. Mas o que antes era um dado permanente, uma característica crônica da estrutura social, parece que agora vai se pondo em movimento: os cromossomos se "pareiam", as metades se encaram frente a frente, replicam-se, refletem-se e tomam distância umas das outras.
Há várias linhas de divisão, e parecem acentuar-se a cada dia. Não faz muito tempo, simpatizantes do PT e do PSDB recebiam apenas o nome de "petistas" e "tucanos". Agora, "petralhas" e "tucanalhas" são termos que passaram ao uso comum.
Sempre tivemos adeptos de várias religiões em nosso território; acostumei-me a um estado de coisas em que uma pessoa não se metia com a outra nesse tipo de assunto. Entretanto, se a rivalidade entre evangélicos, católicos e adeptos do candomblé começa a ser não apenas "vivida" e "sentida", mas também "explicitada" e "vocalizada", tenho medo de que daqui a um tempo estejamos num verdadeiro pandemônio.
A polêmica em torno do Rolex de Luciano Huck é sem dúvida outro exemplo em que a "vocalização" das diferenças sociais adquiriu grande estridência, sem que as partes envolvidas tivessem tanto assim o que dizer.
Claro que a lei vale para todos; claro que há desemprego, droga e desigualdade. Claro que é preciso haver ação social nas favelas, que é preciso prender infratores, que é preciso melhorar as condições dos presídios. Em tese, é fácil concordar com tudo isso.
Ocorre que a vontade de discordar tornou-se mais forte do que a de chegar a um consenso. É que as manifestações, os artigos, as entrevistas que ultimamente têm aparecido na esfera pública estão perdendo, a meu ver, o caráter geral, propositivo, civil que deveriam ter. Tornaram-se desabafos, manifestações de impaciência, de exasperação.
Mutatis mutandis, o "cansei" das elites é também o "senta o dedo" do capitão Nascimento, ou não sei que grito de guerra do gangsta rap em versão adaptada para a periferia paulistana.
Não se trata de alternativas políticas em confronto, nem mesmo de expressão de diferentes pontos de vista subjetivos: a forma dos debates, das polêmicas em curso, tem sido mais e mais calcada na questão das identidades sociais do que na das propostas políticas.
É como se importasse menos dizer "o que eu quero" e mais "quem eu sou". E a posição de cada um -se é negro, branco, pobre ou rico - conta mais do que o que cada um diz.
Faço essa avaliação sem querer exagerar no pessimismo. Na verdade, seria estranho que numa sociedade tão desigual todo debate transcorresse em clima de chá das cinco. Muitos setores que até recentemente não tiveram acesso a meios públicos de expressão conseguem, hoje, se fazer ouvir: internet, câmeras digitais, centros culturais estão ao alcance de mais pessoas, e não haverá de ser sem raiva o recado que têm a transmitir.
Ao mesmo tempo, entretanto, diminuiu o leque das alternativas políticas, das respostas ideológicas para os problemas a que se dá expressão. O resultado é uma espécie de radicalismo sem rumo, de extremismo em striptease, de terrorismo confessional, de provocação via computador.
Durante as eleições presidenciais o caso ficou bem claro: nos blogs e nos e-mails, adeptos de Lula e de Alckmin se entredevoravam com radicalidade assustadora; eram pouco perceptíveis, entretanto, as diferenças programáticas entre os candidatos. Mas um era um, e o outro era o outro; já era o bastante para ninguém se entender.
Nisso - numa questão de identidades, não de alternativas - parecem resumir-se muitas das polêmicas em curso. Se cada envolvido, narcisisticamente, procura apenas afirmar-se onde está, é natural que não se chegue a lugar nenhum.


*

Daqui a pouco perderemos nossa identidade.
Será que ainda conseguimos nos enxergar?

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