Consultor brasileiro da OMS sobre a doença afirma que população tem de fazer sua parte, mas isso não isenta governos de agir
De cada 100 casos de dengue, 70 poderiam ser resolvidos com um atendimento primário num posto de saúde, por exemplo, 25 com atendimento secundário, e apenas 5 necessitariam de atendimento terciário, com internação imediata.
O número de mortes por dengue hemorrágica no Brasil poderia ser reduzido significativamente se o sistema de saúde estivesse mais preparado para o atendimento primário, realizado principalmente em postos de saúde. Se bem orientados e monitorados desde o primeiro dia em que apresenta sintomas da dengue, poucos pacientes teriam que ser internados e menos de 1% morreriam.
A análise é do clínico infectologista Ivo Castelo Branco, 53, professor do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Ceará e consultor da doença para a OMS (Organização Mundial de Saúde).
Segundo ele, a desestruturação do sistema de saúde, aliada ao despreparo dos médicos para identificar a doença e ao uso de critérios de diagnóstico rígidos pela OMS, explica por que o Brasil apresenta taxas de letalidade por dengue hemorrágica tão superiores às consideradas adequadas pela organização.
Até setembro deste ano, pouco antes de o ministro José Gomes Temporão (Saúde) ter declarado que o país vivia uma nova epidemia da doença, 1.076 casos de dengue hemorrágica haviam sido registrados, dos quais 121 infectados, ou 11% do total, morreram. A taxa adequada, segundo a OMS, é de 1%.
Para Castelo Branco, a população precisa fazer sua parte no combate à doença, mas isso não exime o governo de seu papel de orientar, treinar e, principalmente, investir em medidas que diminuam o risco de contágio. Ele lembra que uma das funções mais importantes do poder público é o investimento em saneamento básico. No Nordeste, por exemplo, o local mais comum de focos do mosquito transmissor da doença são as caixas-d'água. Com um sistema regular de abastecimento de água, lembra, a população não precisaria armazenar, diminuindo o contágio.
O infectologista cita Cuba como modelo de país com bons resultados, mas lembra que a experiência não seria facilmente transportada para o Brasil. "Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem hoje todas as medidas possíveis para combater o mosquito transmissor da doença, ainda assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo de pelo menos dez anos", diz.
FOLHA - Por que a dengue mata mais no Brasil do que o tolerado pela OMS?
IVO CASTELO BRANCO - Em primeiro lugar, isso tem a ver com os critérios para diagnosticar dengue que a OMS adota, que são muito cartesianos. Muitos casos de dengue hemorrágica não entram nas estatísticas porque não atenderam a um dos critérios definidos pela organização, o que faz com que as taxas de letalidade aumentem.
No Ceará, por exemplo, tivemos em 1994 uma epidemia com letalidade de 50% porque, dos 150 casos suspeitos, apenas 25 atendiam a esses critérios.
Além disso, temos um problema no atendimento primário. De cada 100 casos de dengue, 70 poderiam ser resolvidos com um atendimento primário num posto de saúde, por exemplo, 25 com atendimento secundário, nos quais seria necessária a realização de exames, e apenas 5 necessitariam de atendimento terciário, com internação imediata.
Como no Brasil o atendimento primário não é bem estruturado ou a população não acredita nele, quando acontece uma epidemia, a pessoa procura logo um hospital e o profissional, mesmo que bem preparado, fica sem condições de atender a todos os casos. Acontece que não tem UTI para todo mundo e essa superlotação das emergências faz com que muitos casos que poderiam ter sido evitados com o atendimento primário evoluam para um quadro mais grave por falta de um bom tratamento.
Anualmente, eu trato cerca de 100 casos de dengue hemorrágica. Desses, apenas um ou outro paciente, às vezes nenhum, acaba tendo que ser internado. Se o sistema público fosse bem estruturado, muitos pacientes não estariam hoje superlotando o setor terciário.
FOLHA - Como fazer um bom atendimento?
CASTELO BRANCO - O grande segredo da dengue é que, quando alguém pega a doença, não se sabe se ela vai evoluir para a forma hemorrágica. Todos os pacientes se queixam inicialmente de febre súbita, dor de cabeça, muita dor nas juntas, um quadro infecioso muito parecido com o de outras doenças. A diferença da dengue hemorrágica para o tipo clássico aparece entre o terceiro e o sexto dia, quando a febre baixa e o paciente tende a ficar melhor.
Porém, se, em vez disso, ele começar a sentir sintomas como muita dor na barriga, desmaios, vômitos, suadeira fria, pressão baixa, falta de ar e tosse constante, é grande a chance de ser dengue hemorrágica.
Se eu atender bem o paciente nessa fase, antes de ele começar a ter hemorragia, consigo dar um bom tratamento e reduzo a letalidade a menos de 1%.
FOLHA - Se a dengue é um problema tão sério no Brasil, por que os médicos não estão preparados para fazer esse diagnóstico?
CASTELO BRANCO - Primeiro porque se trata de uma doença muito recente aqui. Ela só começou a fazer parte dos currículos médicos a partir de 1994 ou 1995. Eu estou com quase 30 anos de formado e não tive aulas de dengue na universidade. Além disso, eu diria que a literatura sobre a dengue no Brasil ainda é muito importada, baseada nas epidemias em Cuba e na Ásia, que têm peculiaridades que não são encontradas no Brasil. Estive, por exemplo, recentemente na Tailândia e fiquei quase três semanas acompanhando os trabalhos em um hospital de Bancoc.
No Brasil, a maior parte dos pacientes é de adultos, com mais de 15 anos. Lá, no entanto, todo dia chegavam de cinco a dez casos de dengue hemorrágica e praticamente todos eram de crianças. Isso acontece porque a Ásia já convive com os quatro tipos de dengue há 50 anos. A maioria dos adultos ou já teve a doença ou já morreu dela. Por isso, as crianças ficam mais suscetíveis.
FOLHA - A tendência é que isso ocorra também no Brasil?
CASTELO BRANCO- Sim. Estamos começando a ver aqui mais crianças apresentando sintomas. E, nesse caso, há um fator complicante, pois é mais difícil identificar nelas os sinais de alarme do que num adulto.
Nem toda criança tem maturidade para descrever sintomas como dor intensa na barriga ou tontura, sem falar nas muito pequenas que ainda estão aprendendo a falar. É por isso que muitas chegam aos hospitais já numa fase mais grave da doença. Nossos pediatras precisarão estar preparados para identificar esses sintomas.
FOLHA - Quase todos os governos, sejam eles federal, estaduais ou municipais, repetem o discurso de que, sem ajuda da população, não há como enfrentar a dengue. Não seria uma forma de eles tentarem se eximir de suas responsabilidades?
CASTELO BRANCO - Antes de tudo, precisamos entender que o combate a dengue não é simples. Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem hoje todas as medidas possíveis para combater o mosquito transmissor da doença [o Aedes aegypti], ainda assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo de pelo menos dez anos.
Isso porque é muito difícil controlar a reprodução do mosquito na fase em que a fêmea coloca seu ovo. Ele pode resistir ao inseticida, ao calor e sobreviver por mais de um ano, além de ser transportado facilmente de um local para outro.
Outro complicador do combate à dengue em áreas urbanas é que, mesmo que apenas 1% das casas tenham foco do Aedes aegypti, ainda assim, correremos o risco de epidemia.
No entanto, principalmente no caso do Nordeste, sabemos que os maiores focos do Aedes são os depósitos de armazenamento de água, muito mais do que jarrinhas, vasos ou bromélias. No Nordeste, a gente tem que armazenar água nas casas por causa da distribuição irregular. Se houvesse um sistema regular de distribuição, isso poderia ser evitado.
É correto dizer que não existe um único culpado para a dengue e que a população tem que fazer a sua parte. Mas isso não exime o governo de seu grande papel de ser o orientador das diretrizes, com campanhas de conscientização bem feitas e treinando bem os profissionais que lidarão com o problema, além de investindo em saneamento básico.
CASTELO BRANCO - Cuba é muito citado como um caso de sucesso, mas é bom lembrar que se trata de uma ilha com características próprias. É uma população muito bem educada e um país onde um fiscal pode entrar em qualquer residência e revirar a casa. Se ele identificar alguma atitude irresponsável, pode multar o morador. Pode ainda entrar sem pedir licença, com ajuda de um chaveiro.
No Brasil, isso seria obviamente muito mais difícil. É o que ajuda a explicar, por exemplo, por que temos um índice de pendência, ou seja, de casas não visitadas, da ordem de 10%. Geralmente, são pessoas que trabalham o dia todo ou que só dormem naquele endereço nos finais de semana. Isso, sem dúvida, dificulta o combate.
No caso brasileiro, em que as características da epidemia variam muito em cada região, é interessante olhar para algumas experiências que tiveram êxito. Há cidades pequenas, por exemplo, que afixam cartazes de incentivo ao controle da dengue em casas onde não foi encontrado nenhum foco do mosquito transmissor.
Em um pequeno município aqui do Ceará, Pedra Branca, o secretário da Saúde treinou professoras primárias de um bairro com altos níveis de infecção e fez um trabalho com os alunos para que eles examinassem três casas: a deles mesmos e a de dois vizinhos. Após fazer esse trabalho, os alunos recebiam uma ficha para concorrer a uma bicicleta. Em pouco tempo, a prefeitura de lá conseguiu ter um bom diagnóstico dos focos e controlou a doença.
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