A relação com a seleção, tanto do torcedor quanto do jogador, já não é a mesma
Eles vêm da Espanha, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra, da França. Vêm também de Portugal, da Holanda e até da Ucrânia e da Rússia. Juntam-se num campo de futebol, ganham uma camisa amarela, e a isso se chama seleção brasileira. Informam os repórteres esportivos que eles não gostam de calor. Estão desacostumados. Em outros tempos era o contrário. O pavor era enfrentar o frio. Quando jogador brasileiro ia jogar na Europa, tinha medo de, numa cobrança de lateral, acabar congelado na posição de mãos ao alto, como bandido rendido pelo xerife. Ou então, ao tentar uma cabeçada, não sair do solo, o gelo acumulado nos pés pesando como bola de chumbo na canela do condenado. Os goleiros, entre os três paus, ofereciam imperdível oportunidade para usar o verbo tiritar, com suas três sílabas que tremelicam e se debatem uma contra a outra. Hoje, para usar sua linguagem, eles tiram de letra. Paisagem de neve lhes é mais familiar do que praia com coqueiro.
Aquilo que hoje em dia se insiste em chamar de seleção brasileira no momento se apresenta na Venezuela, na disputa da Copa América. Dos 22 jogadores que a integram, dezenove jogam na Europa, só três no Brasil (até quando?). Dois, entre os dezenove "europeus", vêm de países cuja inserção entre os "civilizados" seria tão discutível quanto a do Brasil – a Ucrânia, onde joga o ex-santista Elano, e a Rússia do ex-palmeirense Vágner Love. A Ucrânia tem um presidente, Viktor Yushchenko, cujo rosto foi deformado em virtude do que se supõe tenha sido tentativa de envenenamento por parte dos adversários. A Rússia das muitas gangues e máfias é um lugar em que uma jornalista que incomoda o governo com suas reportagens investigativas um dia pode acabar assassinada por um balaço, como ocorreu no ano passado com Anna Politkovskaia. Até em lugares como esses os jogadores brasileiros – e jogadores bons, de primeiro time – hoje vão parar.
Os outros convocados habitam países em que escândalos políticos não brotam com tanta fartura, e quando brotam têm conseqüência. Moram em cidades em que se pode passear à noite e em que os motoristas param diante das faixas de pedestres, respeitam limites de velocidade, só ultrapassam pela esquerda, não trafegam no acostamento e não costumam jogar lixo pela janela dos carros. O leitor pensa que isso é perfumaria? Não, são coisas que depois de alguns anos entram na circulação sanguínea do indivíduo. Ele passa a achar que o normal é assim – e não, como os brasileiros, que o normal é viver entre seqüestros, balas perdidas e trânsito que reproduz uma luta na selva. Acresce que há boas escolas para os filhos e bom tratamento médico mesmo para os pais, irmãos, avós e tios que costumam levar como agregados. De repente – ai! – vem a convocação para a seleção brasileira. Não foi à toa que Kaká e Ronaldinho Gaúcho se apressaram em pedir dispensa. A camisa amarela os arrasta de volta ao Brasil. E o Brasil é um pesadelo do qual estavam conseguindo despertar.
A camisa amarela era a expressão mais alta da nacionalidade. O.k., somos uma nação de retirantes e favelados, desdentados e analfabetos funcionais, mas tínhamos a seleção. Hoje a relação com a camisa amarela dá sinais de esgarçamento, tanto para quem a veste como para quem torce por ela. O desrespeito de quem a veste por suas glórias e seu significado ficou cristalizado, na última Copa do Mundo, na figura do jogador Roberto Carlos – menos pelo célebre momento em que, no jogo contra a França, ajeitava a meia enquanto o adversário fazia o gol e mais pela cena do jogo anterior, contra o Japão, quando, poupado pelo treinador, assistiu à partida não sentado no banco de reservas, mas escarrapachado no gramado, em posição de maja desnuda. Era a expressão viva de um descaso e um deboche que não ousaria ostentar em seu clube.
Para o torcedor, o esgarçamento vem de que soa cada vez mais estranha uma seleção feita de jogadores que não têm nada a ver com os clubes e os campeonatos que se jogam aqui. Antes, ficava-se esperando a convocação e torcendo para que o próprio clube tivesse o máximo de jogadores convocados. Era uma alegria para os flamenguistas quando quatro jogadores de seu time eram convocados contra só um do Vasco, ou, para os são-paulinos, quando cravavam três contra dois corintianos. Hoje, salvo raríssimas e eventualíssimas exceções, sabe-se de antemão que não haverá jogador do próprio clube convocado. Eles virão do Barcelona e do Milan, quando não de um certo SC Heerenveen, time holandês de um certo Afonso, de quem até muito cronista esportivo não tinha ouvido falar. Outro dos atuais convocados, Anderson, que, como hoje é regra, cedo trocou o Grêmio pelo Porto, fala com sotaque português. A seleção vai se descolando do Brasil como uma nave que arranca para distantes paragens. Talvez não volte mais. Um dia, ela foi a pátria de chuteiras. Hoje, é um Brasil que veio do frio. Ocorre que, por lá, não há Brasil.
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Houve uma época em que jogar na seleção brasileira era uma honra para qualquer jogador. Hoje, infelizmente, nos deparamos com este triste quadro. É lamentável.
Que torcedor meu filho será? Terá uma seleção para ele torcer?
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