ALDIR GUEDES SORIANO
Como se pode perceber, os dois extremos devem ser evitados. Por isso, é melhor que o Estado seja neutro
Não há dúvida de que o Estado ateu e hostil às religiões pode ser inimigo das liberdades individuais, principalmente em relação às liberdades de crença, consciência e culto. A própria Revolução Francesa levou, num primeiro momento, a uma série de desatinos contra os religiosos da época. Felizmente essa fase foi superada e a revolução acabou por contribuir para a idéia da separação entre o Estado e as confissões religiosas.
Cumpre observar que o Estado confessional também é capaz de cometer graves desatinos e atrocidades. Os horrores das "santas inquisições" só foram possíveis com a associação entre a igreja e o Estado, quando a heresia passou a ser considerada um crime contra o próprio Estado.
Como se pode perceber, os dois extremos devem ser evitados. Por isso, é melhor que o Estado seja neutro. Sempre que o Estado tentou definir o que é o bem comum por meio de leis, ocorreram graves confrontos, barbáries, genocídios e guerras. Foi exatamente o que ocorreu com a experiência totalitarista nazista, que foi imposta por Hitler a partir da edição das leis de Nuremberg de 1935. O mesmo aconteceu quando os reis católicos Fernando e Isabel solicitaram ao papa a instituição da inquisição espanhola. Os monarcas elegeram o catolicismo como o bem comum e pretenderam a unificação política e religiosa por meio da eliminação das minorias religiosas. Assim, positivando o bem comum, ateu ou religioso, o Estado se torna instrumento da tirania e da opressão.
Por essas razões históricas é que o ordenamento estatal não pode ser rígido. Não se pode positivar o que vem a ser o bem comum na sua plenitude. Daí advém em parte o valor dos princípios constitucionais -tais como o princípio da dignidade da pessoa humana-, aparentemente vagos e imprecisos, mas que podem ser extremante úteis na resolução de problemas jurídicos. Os valores religiosos não devem ser confundidos com o bem comum adotado pelo Estado.
O Estado laico e neutro é um legado do pensamento liberal, que se desenvolveu a partir do século 18. A democracia constitucional, ao adotar o liberalismo político, permite a convivência pacífica das diversas confissões religiosas existentes na sociedade, sem excluir os ateus (vide John Rawls). Assim, a liberdade religiosa alcança tanto crentes quanto descrentes (art. 5º, VI, da Constituição). Embora o preâmbulo da Constituição diga "sob a proteção de Deus", o Brasil ainda é um Estado laico por força do art. 19, I, do mesmo documento legal. O máximo que se pode dizer é que os constituintes promulgaram uma Constituição laica e pluralista sob a proteção de Deus. É interessante notar que o pai do liberalismo, o inglês John Locke (1632-1704), desenvolveu suas idéias de separação entre igreja e Estado e de autonomia individual alicerçado no livre-arbítrio extraído da Bíblia.
É evidente que, diante da ampla liberdade de expressão, o Estado democrático "não pode ser surdo à religiosidade de seus cidadãos", como observam os juristas supracitados, mas também não deve ser indiferente à ética humanista dos ateus. Ambas as correntes são capazes de influenciar, mesmo quando a religiosidade é convenientemente afastada da esfera pública. Isso porque, na esteira dos filósofos Gadamer e Ortega y Gasset, os agentes estatais, pessoas de carne e osso, dificilmente deixarão de carrear suas pré-compreensões religiosas para a esfera pública.
Contudo, é importante manter a religião como assunto essencialmente privado, que deve ficar restrito à família e às organizações religiosas. Como? Impedindo que argumentos religiosos sejam diretamente considerados nas atividades estatais legislativas, administrativas e jurisdicionais.
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Toda autoridade deveria saber disso. Especialmente nos Municípios.
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