31 outubro 2007

JOSÉ PADILHA

Folha de S. Paulo

Para cineasta, miséria não é a causa da violência no país

Diretor afirma que seu filme não prega a violência policial, admite que já fumou maconha e defende a descriminalização das drogas

O diretor de "Tropa de Elite", José Padilha, 40, disse ontem, em sabatina promovida pela Folha, não concordar que a miséria seja a causa da violência no país, pensamento que vê como "padrão" no Brasil. Segundo ele, cidades com índices sociais piores do que o Rio são menos violentas. "Então, existe no Brasil algum processo que converte miséria em violência."
O cineasta criticou declarações do governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), segundo o qual a legalização do aborto ajudaria a reduzir a criminalidade. Padilha, que foi sabatinado pelo editor de Cotidiano, Rogério Gentile, e pelos colunistas Marcelo Coelho, Barbara Gancia e Gilberto Dimenstein, contou que já fumou maconha e defendeu a descriminalização das drogas. Ele fará um filme que pretende retratar a corrupção política no país -"O Corruptólogo".

O FILME PREGA QUE A VIOLÊNCIA POLICIAL É MAL NECESSÁRIO?
Minha resposta é não. Tentei tirar do filme argumentos pró e contra a posição do narrador. Para as pessoas olharem aquilo e refletirem a respeito. A gente tem que se perguntar por que há policiais que pensam assim.

HEROÍSMO
É muito difícil imaginar que alguém considera o Nascimento um herói. [O filme mostra que] Com o nascimento do filho, ele descobre que a sua ideologia, a violência, não é compatível com a sociedade nem com a sua família. Não consegue verbalizar isso, mas passa o filme todo em crise existencial porque percebeu isso internamente. Isso é a premissa do personagem. Qual é o drama dele? "Quero sair daqui." O que me incomoda é que as pessoas não vejam isso e, em vez de se identificar com o personagem, se identificam com o discurso do personagem.

MISÉRIA E VIOLÊNCIA
A idéia era tentar descobrir como policiais vêem a violência. Existe um discurso-padrão que explica os altos índices de violência no Brasil pela miséria. O problema é que esse discurso não resiste aos fatos. Se você pegar dados da ONU e comparar índices sociais com os de violência, vai ver que tem países e cidades com índices sociais bem piores do que os do Rio, e os de violência, muito menores. Então, existe no Brasil algum processo, algum fenômeno, que converte miséria em violência em uma taxa alta. No filme "Ônibus 174" a idéia era mostrar como o Sandro ficou tão violento assim. E a tese subjacente era que o Estado produziu aquilo -a polícia matou os amigos do Sandro na Candelária, e o Sandro foi jogado em uma "Febem", onde crianças apanham e são tratadas como escória. Se você faz isso com pessoas por muito tempo, as transforma em violentas. Isso é uma das coisas que convertem miséria em violência. A outra é a polícia. O que leva a polícia a isso? "Tropa de Elite" diz isso: baixa remuneração, corporação corrompida por dentro... A contrapartida da honestidade na polícia brasileira gerou a violência, isso explica o discurso do Nascimento.

SANDRO E CAPITÃO NASCIMENTO
Os filmes ["Ônibus 174" e "Tropa de Elite"] têm o mesmo enfoque: quero explicar esse comportamento, não quero julgar. O processo que gera uma pessoa como o Sandro [Nascimento] é o mesmo que gera o capitão. Por isso eles têm o mesmo nome [Nascimento].

DROGAS
Não me parece razoável o Estado dizer se devo consumir maconha ou não. Não há lei que impeça o acesso à droga. O que se deve discutir no mundo real é de que forma se dará o acesso. O próximo passo é lógico: tem de legalizar. O Estado não diz se você pode ou não fumar cigarro, no entanto, faz uma campanha maciça explicando o que o cigarro faz. E cobra um imposto elevadíssimo. Acontece que [com isso] caiu bruscamente o consumo de cigarro. No mundo ideal, sou favorável à legalização das drogas e a tratar a questão como de saúde pública.

INGRESSO BARATO
Neste fim de semana devemos ter mais de 2 milhões de espectadores, deveremos chegar a mais de 3 milhões. Mas o público caiu mais rápido do que o do "Carandiru" nos cinemas de classes C e D em razão da pirataria. Estamos propondo para os exibidores jogar o preço do cinema a R$ 5 para ver se esse público vai ao cinema. E não sei se não deveria existir incentivo fiscal para a compra de ingresso de filme brasileiro. Talvez aí não precisasse do incentivo para a produção ou [esse incentivo] seria menor.

COMBATE À PIRATARIA
Poderíamos fazer como o Radiohead [grupo de rock inglês], oferecer o download na internet e cobrar. Teve um cara do Sul do país que me mandou um e-mail dizendo que tinha visto o filme pirata, tinha gostado muito. Queria o número de minha conta para depositar o valor do ingresso. É uma solução genial, direto na minha conta [risos].

PRÓXIMO FILME
[É] "O Corruptólogo", com a mesma maneira de filmar, [olhando o] que gera um certo político típico, como temos no Congresso. O político típico está lá por um motivo, tem a ver com as leis de financiamento de campanha. É uma idéia do Gabriel O Pensador.

IMAGEM DE ONGS
Tem ONGs seriíssimas, mas há também as que não são. Quando fiz "Ônibus 174", olhei a estatística de meninos de rua e ONGs no Rio. Eram 3.400 meninos de rua e 1.615 ONGs. Se cada uma pegasse dois, acabava o problema. As ONGs são importantes, mas desconfio da proliferação. O filme não é tese científica. Uma tese tem metodologia e lógica próprias, mas são simplificações também. No cinema, que não tem a lógica da pesquisa, mas a da dramaturgia, a simplificação é maior ainda. A ONG do filme está inspirada numa do morro Dona Marta. O cara da ONG quase terminou como o do filme.

FUMA MACONHA?
Não. Já fumei.

ABORTO E VIOLÊNCIA
O aborto é uma discussão muito complicada, que não tem só a ver com violência. É um argumento muito ruim [do governador Sérgio Cabral (PMDB), do Rio de Janeiro] dizer que legalizar o aborto diminuirá a violência. É muito complicado entender os fenômenos sociais.

LUCIANO HUCK
Céus...! O artigo dele existiu em um contexto. O Confúcio, vou apelar a ele, fala assim: "Em um país justo, a miséria é uma vergonha. Em um país injusto, a riqueza é uma vergonha". No Brasil existe crítica à riqueza e à ostentação. O que acho que ele quis dizer foi: "Posso usar um Rolex, porque não roubei esse Rolex". Eu não usaria um. Acho que faltou a ele parar para pensar no contexto. Mas discordo do tom do artigo. Dizer "chama o Capitão Nascimento" é uma reação emotiva, mas a idéia é errada, pois o Capitão Nascimento acredita na coisa errada.

EFEITO EM CRIANÇAS
Meu filho de quatro anos canta uma música do filme: "Morro do Dendê é ruim de invadir...". Não é proibindo música que vai reduzir violência. A idéia de que o filme é perigoso é ruim. O filme é para maiores de 16 anos, mas a cópia pirata não é proibida para ninguém.

REAÇÃO NA PUC-RJ
Em um debate na PUC, um cara perguntou o que eu achava que tinha feito com a imagem da PUC. Comecei a rir, e ele disse que eu não poderia rir. Usei lá como locação. Tinha uma pessoa da PUC me acompanhando na filmagem. Aí o aluno disse: "Quem foi essa pessoa?". Respondi: "Por que, você vai botar a pessoa no saco?".

BRASIL CAI EM LISTA DE COMPETITIVIDADE GLOBAL

Veja OnLine

O Brasil caiu sete posições no ranking de Competitividade Global, divulgado nesta quarta-feira pelo Fórum Econômico Mundial. O documento, que traz os 131 países "mais competitivos" do mundo, diz que o Brasil apresentou um ambiente para negócios "abaixo das expectativas diante da sofisticação de suas empresas". Em primeiro lugar, estão os Estados Unidos.

Na lista, o Brasil passou da 66ª posição para a 72a, ficando atrás de nações como Rússia (58ª), Índia (48ª) e China (34ª). Uma das razões da perda de posições seriam os baixos índices no indicador "dinamismo", segundo o levantamento.

Na América Latina, o Brasil ficou atrás do Chile, o primeiro da região no ranking, na 26ª colocação. Porto Rico (36º), México (58º) e Colômbia (69º) também ficaram à frente dos brasileiros. A Argentina veio "em um decepcionante 85º lugar", nas palavras do relatório.

Apesar do mau desempenho, o Brasil foi destacado pelo relatório. O texto chamou a atenção para "várias vantagens competitivas", como "o grau de sofisticação do setor empresarial, a capacidade de inovação e a facilidade em absorver e adaptar tecnologias do exterior".

BRASIL: MENOS GLOBALIZADO

Segundo o Relatório da consultoria AT Kearney e da revista americana Foreign Police, o Brasil é um dos países menos globalizados do mundo, ocupa o 67º lugar, numa lista com 100 países. Está atrás da Argentina, Chile. O Panamá é o mais globalizado da América Latina.
Cingapura é o país mais globalizado do mundo, seguido por Hong Kong, Holanda,
Suíça, Irlanda e Estados Unidos.

RELAX

Do Blog de Cláudio Humberto:

O CULPADO DE SEMPRE
O leite tem soda cáustica e água oxigenada, o queijo tem validade fajuta. A vaca ainda acaba presa por falsificação fisiológica.

A LISTA DE DUNGA

Estes são os 22 jogadores convocados pelo técnico Dunga para os dois próximos jogos das Eliminatórias da Copa de 2010, na África do Sul.
Dia 18 de novembro, o Brasil jogará contra o Peru, em Lima. E no dia 21, contra o Uruguai, no Morumbi.
Observe o detalhe: apenas 1 convocado joga no Brasil.

Júlio César - Inter de Milão
Doni - Roma
Maicon - Inter de Milão
Daniel Alves - Sevilha
Lúcio - Bayern de Munique
Juan - Roma
Alex Costa - Chelsea
Naldo - Werder Bremen
Gilberto - Hertha Berlim
Kleber - Santos
Mineiro - Hertha Berlim
Gilberto Silva - Arsenal
Josué - Wolfsburg
Fernando - Bordeaux
Elano - Manchester City
Kaká - Milan
Diego - Werder Bremen
Ronaldinho - Barcelona
Júlio Baptista - Real Madrid
Robinho - Real Madrid
Vagner Love - CSKA Moscou
Afonso - Heerenveen

FRASE

"Nada incomoda mais um canalha do que uma pessoa de bem."
senador Jefferson Péres (PDT-AM), ao afirmar que não é chantageável






ORGULHOSOS, MAS CEGOS

CLÓVIS ROSSI

Por muito que passe o tempo nas estradas da notícia, por muito que o Brasil político convide ao ceticismo, já a caminho do cinismo, ainda assim há coisas que conseguem me espantar. Exemplo: a nutrida comitiva de políticos brasileiros que, chefiada pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, veio a Zurique para a confirmação do Brasil como país-sede da Copa de 2014.
Se fosse disputa, vá lá. Mas para uma mera confirmação?
Até eu já sabia que o Brasil estava escolhido havia meses. De todo modo, o tamanho da comitiva acabou sendo o espanto menor. Ao término da cerimônia oficial, aberta a sessão para perguntas, uma jornalista do Canadá, Erica Bouman, fez a pergunta mais ou menos óbvia sobre como o Brasil poderia garantir a segurança, em sendo um país perigoso, com grande número de mortes.
O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, reagiu como se a pátria tivesse sido ultrajada. Desviou a questão para o tema da violência em outros países, o que é real, mas passa alegremente por cima do fato de que quem vai organizar a Copa de 2014 é só o Brasil.
Foi aplaudido furiosamente pela nutrida comitiva, como se tivesse resgatado a honra verde-e-amarela.
Pior: seus assessores puseram em circulação, como é de praxe no Brasil, uma teoria conspiratória. A repórter (da AP norte-americana) teria sido instruída por seu governo, supostamente interessado em assumir a Copa outorgada ao Brasil, se o país falhasse nas providências necessárias.
O técnico Dunga, um dos que espalhavam a suspeição, batia no peito, lamentava que os jornalistas brasileiros supostamente acreditassem na canadense (que, aliás, apenas apontava fatos reais) e reclamava: "Temos que ter orgulho de sermos brasileiros".
Tudo bem, mas temos também que ser cegos?

30 outubro 2007

ESCLARECIMENTOS SOCIOPOLICIAIS

FERNANDO BONASSI

Há tropas e há elite; as primeiras poderão ser numerosas, mas a outra será a mínima possível

Visando lembrar o nível indigesto do debate saudável, vimos por meio desta alimentar a explicação, expiação ou confusão... E informar que:
Há tropas e há elite.
As tropas costumam ser policiais, mas a elite é sempre política.
As tropas poderão ser numerosas, dependendo da quantidade de conflitos para distribuir ou injustiça para administrar entre os muito pobres pelos mais ricos; mas a elite destes últimos será a mínima possível, para que os altos lucros geridos em sua posição não configurem maior distribuição e ascensão dos que precisam manter embaixo.
Uns dependem dos outros diretamente para ficar onde estão, como disseram de antemão os marxistas mais antigos e conservadores, leninistas ou lenientes. Aliás, faz tempo que é assim, meio imoral, meio inconsciente, por mais moderno que o velho nos apareça...
Assim, por mais sutil que pareça, uma tropa de elite é sempre uma tropa da elite, sejam honestas ou duvidosas, disciplinadas, avacalhadas ou perigosas as circunstâncias em que atuem umas e outras.
Isso não quer dizer que os membros de uma tropa de elite percebam as mesmas honrarias, patrimônios ou honorários dos integrantes da tropa da elite. Não. É preciso dar condições aos soldados, mas não demais... É mais de um modo que os funcionários militares se atenham às ordens dos patrões e menos às pregações dos militantes revolucionários.
Um homem ordinário de uma tropa de elite, por exemplo, poderá sonhar com um Rolex em seu pulso, mas é mais provável que a tropa de perdulários da elite os possua, ainda que representem algemas em seus braços. De todo modo, nem todos os traços que possuem nessas coisas importadas -sejam de que tropa for- poderão atestar a sua procedência nestas terras.
Uma tropa de elite deverá ser identificada por farda, equipada com coletes à prova de bala, fuzis de grosso calibre e viaturas blindadas, enquanto a tropa da elite há de preferir garantir seus interesses à paisana, entre cercas eletrificadas, com segurança contratada ao inimigo e de canetas pretas em punho, como armas brancas que assinam decretos em carros de defunto "descaracterizados".
O uniforme de uma tropa de elite deve ser funcional, formal ou camuflado, de acordo com cada ocorrência hipotética, enquanto o traje da tropa da elite poderá até ser informal, cosmético ou espalhafatoso, preparado num corte charmoso pelos estilistas elitistas de plantão (em tempo: as costureiras bolivianas são recrutadas por licitação manjada, sem carteira assinada pela imigração).
Uma tropa de elite normalmente atinge essa posição por mérito de sua experiência policial ou deve ser recrutada por concurso público, enquanto a tropa da elite se dedica ao conluio privado e informal, onde impera o mandato e o jeitinho congênito, genético e hereditário dos monarquistas, conforme atestam as biografias e heranças dos capitães do mato e demais arrivistas desta República.
Uma tropa de elite dessas poderá ser racista em seus conceitos de atuação, mas serão capitalistas os recursos financeiros empregados em sua sustentação pela tropa da elite, que é por natureza preconceituosa, já que está na situação daqueles que são melhores do que os outros.
As piores tropas de elite poderão ser promíscuas com o Estado, mas é a tropa da elite o Estado ele mesmo, mesmo que possa tê-lo cedido em comodato ou aluguel subsidiado aos operários e doutores pseudosocialistas.
Em relação estas tropas sempre estão num ser e não ser que não resolve a questão...
Independentemente dos monólogos tediosos que fizermos e das justificativas filosóficas que tivermos desses casos e versões, é fato que uma tropa de elite e as tropas de elite têm em comum esses fóruns de privilegiados... Uns porque serão julgados em segredo para a satisfação de seus parceiros de armas, outros porque se protegerão das armadilhas da legislação vigente sem vergonha das imunidades obscenas que ganharam de presente na eleição.
Uma tropa de elite precisa ser um time bem unido, mas "muito amigos" nós só encontraremos entre os membros de eleitos e delitos das tropas da elite...
Uma tropa de elite pode até contar suas histórias de ficção para as câmeras, mas a verdade é que a tropa da elite mesmo não queimará seu filme aparecendo de peito aberto nas luzes das salas de exibição.
O espetáculo do anonimato é a sua melhor proteção.

NEM SILÊNCIO NEM OMISSÃO

BENJAMIN STEINBRUCH

Cabe a todo empresário procurar participar de ações para atacar os problemas sociais do país em sua raiz

Em alguns momentos, durante a reunião convocada pelo presidente Lula com 96 empresários na semana passada, lembrei-me de uma pesquisa feita no início do ano pelo Instituto Ipsos, a pedido do Ciesp. O objetivo da iniciativa era mostrar o que a sociedade espera do empresário brasileiro.
O resultado da pesquisa certamente explica por que aqueles homens e mulheres estavam ali no Planalto na quarta-feira. A maioria absoluta da população brasileira, 73%, acha que o principal papel do empresário é exercer responsabilidade social e investir no país. Isso talvez explique também o comportamento -que eu chamaria de civilizado- dos participantes da reunião. Por um momento, deixaram de lado seu espírito crítico e até posições político-ideológicas para pensar o país.
Na pesquisa, apenas 4% dos entrevistados disseram que o principal papel do empresário é político. Mas o que é responsabilidade social para um empresário? Considero que, em primeiro lugar, é a obrigação de cuidar do próprio negócio, para que ele prospere em benefício da comunidade, por meio do aumento da produção e da geração do maior número possível de empregos. É socialmente inaceitável, por exemplo, o conformismo com o próprio negócio, aquela tentação que às vezes ataca o empresário acomodado, baseada na idéia de que já tem um empreendimento robusto que não precisa mais crescer. A garra empreendedora, que Keynes chamou de "espírito animal", é qualidade obrigatória no empresário socialmente responsável.
Responsabilidade social, porém, é mais do que isso. Confunde-se, muitas vezes, o exercício da responsabilidade social com o assistencialismo, materializado em ações que visam a atacar problemas pontuais com injeção de recursos para resolvê-los de forma isolada. Essa atitude é necessária e útil para curar crises agudas.
Responsabilidade social é mais abrangente. Consiste em procurar participar efetivamente do enfrentamento de causas e não apenas da extirpação de sintomas. Cabe ao empresário, grande ou pequeno, pelos recursos de que dispõe e até pela influência política que tem, procurar participar de ações para atacar os problemas sociais em sua raiz. E isso, de preferência, na comunidade em que está inserido, sem pretensão de se achar o salvador da pátria.
Ao participar do encontro com o presidente Lula, de forma civilizada, os empresários atendiam a essa demanda da sociedade, de que devem assumir suas responsabilidades.
Empresários conscientes não podem se negar a pensar o país. Faz parte dessas responsabilidades, porém, o firme engajamento em programas de crescimento econômico e desenvolvimento, que no longo prazo é o maior remédio para os problemas do país.
É um erro considerar que a atitude comportada dos empresários na reunião do Planalto seja um sinal do advento de um período de omissão e silêncio a respeito de políticas econômicas equivocadas. De minha parte, voltarei a enfatizar, sempre que julgar necessário, a ortodoxia recessiva da política monetária e cambial, a falta de políticas industriais focadas nas vocações brasileiras, a ganância arrecadadora do governo, os gastos exagerados do setor público com despesas correntes e a urgência de investimentos em infra-estrutura. Essa pregação é necessária para combater mentalidades retrógradas, que retardam de maneira dramática o desenvolvimento. Reconhecer avanços é obrigação de qualquer cidadão. A economia melhorou. Mas, como pode melhorar muito mais, a luta continua.

SARNEY CRITICA CHÁVEZ E SUGERE VETO À VENEZUELA NO MERCOSUL

Folha de S. Paulo

Para senador, venezuelano iniciou "corrida armamentista" no continente; oposição diz que democracia "capenga e defeituosa" influencia políticos brasileiros

O senador José Sarney (PMDB-AP) voltou a criticar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a quem creditou o início de uma "corrida armamentista" no continente, e sugeriu que o Senado vete o ingresso do país no Mercosul.

"É um perigo ao Brasil e à América Latina que tenhamos uma potência militar instaurada dentro do continente. Se não temos recursos no Orçamento para destinarmos às forças militares, nem o Brasil nem os outros países da América Latina, uma corrida armamentista na América Latina nos obrigaria a nos desviarmos do nosso caminho de investir na área social para termos que fazer o equilíbrio militar", afirmou, em discurso no plenário.

Sarney já havia feito outras críticas a Chávez. Ontem, o peemedebista também criticou alterações na legislação da Venezuela que ampliam os poderes de seu presidente e as recentes compras de armamentos. Segundo ele, Hugo Chávez teria gasto US$ 4 bilhões em aviões, navios e fuzis.

"Nós já o vimos ali em cima, dizendo que era a melhor democracia do mundo. Que democracia eles estão construindo! Basta que tenhamos a visão do que se faz em relação às armas e às instituições para que possamos ter apreensões", afirmou o senador.

Em seguida, Sarney cogitou a possibilidade de o Senado não aprovar a inclusão da Venezuela no Mercosul -a proposta já foi aprovada em comissão na Câmara. "Se tivermos o pedido da entrada da Venezuela no Mercosul, devemos examinar se este país está realmente cumprindo os itens fundamentais do Mercosul", disse.

Na semana passada, o deputado venezuelano Carlos Escarrá também atacou o senador brasileiro, a quem chamou de "lacaio" e "servil". "Não temos nada contra o governo Lula e o povo do Brasil, mas sim contra esse cisto lacaio e servil que parece um boneco de algum desses ventríloquos que fazem outra pessoa falar", afirmou o venezuelano.

O discurso de Sarney abriu um debate no plenário. A oposição tentou associar a fala do peemedebista para traçar um paralelo com a possibilidade de um terceiro mandato do presidente Lula. Essa possibilidade foi aventada por aliados do governo na Câmara.

"Fica para reflexão o exemplo que eles estão, com a sua democracia capenga ou defeituosa ou inexistente, produzindo para a classe política no Brasil. Há parlamentar no Brasil que está ousando, um quer a rediscussão do tamanho do mandato com reeleição, e outro, amigo pessoal do presidente propõe plebiscito [pelo terceiro mandato de Lula]", disse o líder do DEM, José Agripino (RN).

"Está evidenciado que o presidente Hugo Chávez pretende adequar o Mercosul aos seus interesses personalíssimos", disse Álvaro Dias (PSDB-PR).

DESALENTO MUNICIPAL

Editorial da Folha de S. Paulo

Em 2006, os municípios brasileiros empregavam 5,07 milhões de pessoas - 2,7% dos brasileiros e 5,2% da população economicamente ativa. Desde 2004, o emprego na administração das cidades crescera com vigor (12,3%). Mas não há indício de que essa expansão esteja associada a um avanço na qualidade de prestação de serviços pelos municípios. Pelo contrário.
A pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros, do IBGE, deixa claros a falta de foco na melhora da gestão e o desvirtuamento de prioridades. Apesar de tanta contratação, apenas um terço das prefeituras tomou medidas para valorizar o magistério. Gastos em organização administrativa e autonomia financeira só ocorreram em 25% e 10% das cidades, respectivamente.
A guerra fiscal entre os municípios é outra preocupação. De acordo com o IBGE, metade das prefeituras no país utiliza algum tipo de incentivo para atrair investimentos privados. De 2004 a 2006, os benefícios mais utilizados foram a doação e a cessão de terrenos, seguidos do abatimento e/ou da isenção pura e simples de impostos e taxas.
A guerra fiscal, cada vez mais acentuada no âmbito de Estados e municípios, é um obstáculo decisivo à reforma tributária, que deveria buscar a unificação de diferentes tributos num imposto sobre valor adicionado (IVA). Infelizmente, pouco avança o entendimento de que outras formas de incentivo ao desenvolvimento regional, tais como investimentos em infra-estrutura e capacitação profissional, podem ser, em médio prazo, mais eficientes do que a guerra fiscal para atrair empresas.
Mas o que mais atrapalha a racionalização dos serviços prestados por prefeituras é a proliferação de municípios inviáveis financeiramente após a Carta de 1988. Mais de mil municípios foram criados desde então, multiplicando custos administrativos - e reduzindo, portanto, investimentos-, quase sempre sem justificativa a não ser o interesse da oligarquia local.

JANOTAS

Millôr

Subitamente, num nanomomento histórico, o politicamente correto decretou que é proibido fazer qualquer piada sobre qualquer grupo "minoria". Todos pertencentes a esses minoritários – embora mulheres, negros e gays sejam, visível e estatisticamente, maioria – são perfeitos, impolutos, acima de qualquer suspeita e, melhor (ou pior), acima de qualquer piada.

Agora, o contrário: esses grupos, e todos nós, podemos falar, impunemente, da loura burra.

E eu, que não tenho coragem de infringir nenhum preceito politicamente correto, aproveito e também gozo essa loura modelo que, como todos vocês sabem, só tem dois neurônios.

E acrescento: tem dois neurônios, mas só usa um.
O outro é step.

Deixa de procurar, amigo. Par perfeito só mesmo o do sapato. E olhe lá.

Baldio. Nunca ouvi esse adjetivo empregado senão pra adjetivar terreno. Terreno baldio.

Falar nisso, que fim levou o terreno baldio? Morreu. Desapareceu. Está enterrado embaixo dos arranha-céus.

Por inferência, careca também é baldio. E, pela mesma inferência, fazendas no olho do furacão do MST são consideradas baldias pela recuperação social. E toda a Amazônia, do ponto de vista dos madeireiros e das multinacionais farmacológicas.

Sarney, olhando as fotos da Mônica na Playboy, murmurou, lastimoso: "Pô, por que eu não levei o Photoshop pra cama?".

Há muitos anos, "no tempo em que João, filho de Pedro, memorava, depois que livre o teve do vizinho poder, que o molestava", compareci, ingenuamente, levado por meu amigo Técio Lins e Silva, a um congresso sobre drogas, no Palácio da Cúria, no Sumaré, RJ, presentes inclusive Dom Eugênio e o Padre D'Ávila, reconhecido como sacerdote aberto a todos os ventos. Quando vi, estava num simpósio (palavra culturalmente assustadora) com 56 pessoas, polícia internacional, ex-drogados, especialistas em drogas, juristas, o escambau. De um sábado de manhã ao domingo à noite discutiu-se tudo referente a drogas e seu indiscutível sucesso – social, pessoal, criminal. Boquiaberto, mantive-me de boca fechada. Mesmo porque eu não tinha nada a ver com o enfoque geral. No fim do simpósio, o plenário foi dividido em quatro grupos, 14 pessoas cada grupo.

No meu grupo, aí sim, eu falei: "Vocês vão me perdoar, mas me deixem falar primeiro, porque possivelmente sou o mais radical de vocês". E advoguei a liberação de todas as drogas. Pra minha surpresa não houve muita oposição. Aparentemente não havia, de imediato, outra solução. Foi escrita uma moção, retificada sabiamente por Técio Lins e Silva.

De volta ao plenário, Técio leu nossa moção. Dom Eugênio, agora presente, perguntou um tanto flabergasted: "Os senhores aprovaram isso?".

Pela primeira vez me levantei e disse: "Por unanimidade, Dom Eugênio".

Mais duas vezes Dom Eugênio teve a mesma reação, obteve a mesma resposta.

Anos depois, quando ventos mais liberais trouxeram de novo à baila a discussão, pedi a Técio que solicitasse à Cúria nossa modesta proposta. Ele não conseguiu. Acho que o texto nem estava no arquivo.

Assim caminha a humanidade.

INTENÇÕES POR TRÁS DAS PALAVRAS

Stephen Kanitz

"Se não nos preocuparmos em detectar a agenda oculta de quem nos prega alguma coisa, seremos presas fáceis dos que falam bonito e escrevem melhor ainda"

Muitos escritores, cientistas e formadores de opinião usam e abusam de nossa confiança. Sutilmente nos enganam para defender os próprios interesses. É o que em epistemologia chamamos de "a agenda oculta". É assustador o número de filmes de Hollywood que têm uma agenda oculta, e como caímos como uns patos acreditando em tudo. Eu sempre desconfio da agenda oculta de escritores, colunistas e pseudocientistas. É a primeira coisa que tento adivinhar. Ele, ou ela, está querendo me dizer exatamente o quê? Que bronca carrega na vida? Ele é separado, foi um dia traído, multado, preso ou ludibriado?

Quanto mais velhos ficamos, mais percebemos quanta agenda oculta existe por trás de quase tudo o que é escrito hoje em dia no Brasil e no mundo. É simplesmente desanimador.

Salman Rushdie, o autor de Versos Satânicos, ao responder recentemente a por que preferia escrever ficção em vez de livros técnicos, afirmou: "Na ficção pegamos o leitor desprevenido". Desprevenido significa sem a vigilância epistêmica necessária para perceber o que o escritor está tentando fazer. É mais fácil uma feminista radical escrever um livro de ficção em que todos os personagens masculinos são uns calhordas do que escrever um livro de sociologia dizendo que "todo homem é um canalha", o que resultaria em processo judicial. Por isso, prefiro sempre artigos que apresentam tabelas, números e outras informações concretas em vez de "idéias", opiniões e indignações. É justamente isso que editores de livros no mundo inteiro nos aconselham a evitar, porque senão "ninguém lê", o que infelizmente é verdade.

Mas é justamente isso que deveria ser lido. Queremos dados agregados, que são difíceis de arrumar, para nós mesmos fazermos nossas interpretações. Se houver uma equação complicada, melhor ainda, porque equações nos revelam regras, relações entre variáveis e tendências. É a isso que se chama ciência. A opinião dos outros sobre um fato isolado é conversa mera e efêmera. Daqui a um mês ninguém mais falará de Renan Calheiros, assunto que coletivamente nos ocupou por quatro meses.

Infelizmente, somos uma nação que idolatra quem faz parte da academia de letras, aqueles bons de papo, que escrevem bem, e não aqueles que pesquisam bem ou calculam com rigor científico. Ignoramos solenemente os que fazem parte de nossa Academia Brasileira de Ciências, que descobrem a essência do que ocorre na prática, as causas de seus efeitos, os que usam o método científico de análise. O último acadêmico de ciências nem sequer foi noticiado pela imprensa brasileira. "Imortais" no Brasil são aqueles bons de bico, que nos seduzem com belas frases e palavras, por isso somos um país do "me engana que eu gosto". Nosso descaso com ciência, estatísticas, equações, dados, números, análise científica é a causa de nosso atraso. Porque não nos preocupamos com ciência, viramos o país da mentira.

Muito do que se escreve, até em livros de filosofia, vem, na realidade, de pessoas justificando sua vida, seus erros e suas limitações. Elas têm uma agenda oculta que cabe a você descobrir. Quando alguém sai propondo maiores gastos em educação, sempre indago se não é mais um professor querendo maiores salários, pagos por impostos, "impostos" à sociedade. Notem como 95% desses artigos pedem verbas, vinculações de verbas e mais verbas, e nenhum discute quais as novas matérias que seriam ensinadas. Omitem invariavelmente o fato de que hoje, nas universidades, algo em torno de 50% dos alunos nem terminam o curso – e por volta de 50% dos que terminam não exercem a profissão. Esse é um problema resolvido com mais verbas ou com uma urgente reforma no conteúdo educacional?

Desconfio sempre de quem não oferece seu e-mail ou site num artigo ou livro publicado. É como se dissesse: "Já sei tudo". Prefiro ler quem o oferece e lê as mensagens, sugerindo que é um humilde cientista que quer saber se escreveu algo errado, para corrigir o que foi escrito.

Se não mudarmos nossa mentalidade, se não nos preocuparmos em detectar a agenda oculta de todos aqueles que nos pregam alguma coisa, pagaremos caro pela nossa falta de vigilância epistêmica. Seremos sempre presas fáceis dos que falam bonito e escrevem melhor ainda.

29 outubro 2007

A MULHER DE RENAN

Mônica Bergamo

"Renan sempre quis me dar uma filha"

Num casaquinho amarelo-limão da grife Isabela Capeto, com pedaços de panos verdes, vermelhos e marrons costurados como retalhos, Verônica Calheiros se prepara para viajar de SP a Brasília. Quase toda semana, ela vem à cidade para uma visita à clínica de Roger Abdelmassih, com quem faz tratamento para engravidar.


Aos 44 anos, Verônica, mãe de três homens (o mais novo tem 23 anos) e avó de um neto, quer agora uma menina. "Eu sempre quis ter uma filha e o Renan sempre quis me dar uma filha", diz. "Isso ficou até engraçado, né? Porque ele queria tanto que acabou tendo uma [filha] fora do casamento!", diz. Na sexta, antes de embarcar para a capital, ela falou à coluna.


GRAVIDEZ
"Esse desejo não tem nenhuma relação com o fato de o Renan ter tido uma filha [com a jornalista Mônica Veloso]. Há seis anos, eu tentei fazer um tratamento em Brasília para engravidar. Foi com a doutora Hitome [Miúra Nakagava, especialista em fertilização]. Quem quiser pode investigar. Eu sempre quis ter uma filha e o Renan sempre quis me dar uma filha. Isso ficou até engraçado, né? Porque ele queria tanto que acabou tendo fora do casamento!"

TRATAMENTO
"Eu agora estou em lua-de-mel com o meu marido. Depois da turbulência [em que ela descobriu o relacionamento extra-conjugal do senador com a jornalista Mônica Veloso], há três anos, nós renovamos o nosso casamento. Foi quando surgiu de novo a idéia de termos mais um filho. Os nossos já estão adultos. E nada melhor para alegrar a vida de um casal do que uma criança. Eu tenho as trompas ligadas, por isso busquei tratamento. Acompanhei a visita de uma amiga à clínica do doutor Roger [Abdelmassih]. E ele me encorajou. Já fizemos os exames, iniciamos o tratamento [o senador também vai à clínica]. Quero muito uma menina. O doutor Roger vai ser o instrumento de Deus para realizar esse sonho."

MÔNICA VELOSO
"Eu acho que ela é uma mulher normal, sem nada de mais. Se chegar aqui agora, passa despercebida. Mas eu não quero falar dela. Eu não quero que a filha [de Renan com Mônica] leia alguma coisa nos jornais daqui a dez anos e diga "como a Verônica foi megera com a minha mãe". Porque a criança é abençoada por Deus, sempre. Eu ainda não conheço, mas, de certa forma, eu já convivo com a menina. Porque eu sei onde ela estuda, o Renan paga a pensão. Já por ela [Mônica], eu não tenho sentimento nenhum."

BELEZA
"Às vezes alguém me fala "a mulher do fulano é linda". E eu digo: "Linda, não. Ela é jovem. Juventude é uma coisa. Beleza é outra."

CASAMENTO
"Eu sofri muito quando eu soube [do relacionamento do marido com Mônica]. E eu soube por outras pessoas, por cartas anônimas, não por ele. E comecei a perceber que ele estava triste, angustiado, não conseguia dormir direito. Um dia, eu falei: "Nan, eu quero que você me conte a verdade para que eu possa te ajudar". E ele me contou tudo. Eu perguntei: "Nan, você quer ficar com essa pessoa?". Ele falou: "Eu quero você. Você é a mulher da minha vida. É a minha companheira". Eu o perdoei. E, aconteça o que acontecer, nós vamos estar juntos, como estamos há quase 29 anos, desde os meus 17 anos. Eu sou uma mulher como milhões e posso não fazer diferença para os outros. Mas, para ele, eu sei que eu faço. Hoje mesmo, eu ia saindo de casa, ele me chamou e disse: "Ei, não vai me dar um beijo?"."

HOMEM BESTA
"Eu disse isso mesmo e repito: homem é besta. A mulher enrola ele, a filha enrola ele dentro de casa..."

PERDÃO
"O Renan ficou muito triste. E até hoje, todos os dias, ele me pede perdão."

ESCÂNDALO POLÍTICO
"Eu não quero falar sobre isso. Eu não quero dar uma declaração que prejudique o Renan. Mas eu gostei de ele ter tirado licença da presidência do Senado. Só acho que ele tem que voltar [para o cargo]. Os senadores votaram por sua absolvição."

LULA E MARISA
"O [presidente] Lula nos deu um apoio muito grande. A dona Marisa também. Um dia eu a encontrei numa solenidade. Ela me abraçou e disse: "Tudo na vida passa. É só uma questão de tempo. É só esperar um pouquinho. E ter paciência"."

OS JOVENS E A BEBIDA

FolhaTeen


ATÉ A ÚLTIMA GOTA

Novas pesquisas indicam que adolescentes começam a beber cada vez mais cedo e de forma abusiva

Véspera de feriado em uma escola de elite da zona oeste de São Paulo. Quando soa a campainha que marca o fim das aulas, o destino é o mesmo para vários alunos: o boteco mais próximo.
Sinuca, cerveja e pandeiro embalam o início da tarde. Para alguns, a balada vespertina é eventual. Mas, para outros, como Rafael, 15, o bar é passagem obrigatória depois das aulas.
Pelo menos quatro vezes por semana, ele toma entre quatro e cinco garrafas de cerveja com os amigos, enquanto joga uma partida de sinuca na saída do colégio. Na sexta, inclui também quatro doses de pinga.
"Geralmente bebo porque estou de saco cheio da semana e quero dar um "relax". Gosto de ficar bêbado", conta o estudante. Para ele, que se considerava um garoto tímido e "travado" até dois anos atrás, a bebida "facilita várias coisas". "O humor muda, a auto-estima melhora, fica mais fácil de interagir."
Rafael provou bebida alcoólica, oferecida pelos pais, aos nove anos, e começou a beber com regularidade aos 12.
O caso de Rafael não é exceção. Ele ilustra uma tendência de comportamento que especialistas já detectaram entre os adolescentes brasileiros: eles começam a beber cedo e muitos bebem de forma abusiva.
Uma pesquisa elaborada pela Unifesp em parceria com a Senad (Secretaria Nacional Antidrogas) - o 1º Levantamento Nacional sobre os Padrões do Consumo de Álcool na População Brasileira, realizado entre novembro de 2005 e abril de 2006 com dados representativos de 100% da população brasileira-, mostra que a idade de início de consumo de álcool diminuiu nos últimos anos.
Adolescentes que têm hoje entre 18 e 25 começaram a beber aos 15,3, enquanto jovens de 14 a 17 anos começaram aos 13,9 anos.
"É uma adolescência bastante tenra. Provavelmente isso é uma tendência que vem acontecendo há muito tempo, de geração em geração", diz a psicóloga Ilana Pinsky, uma das responsáveis pela pesquisa.
De acordo com o estudo, dois terços dos adolescentes são abstinentes. Mas 16% do total -ou metade dos que consomem álcool- já beberam em "binge" (termo técnico que significa pelo menos quatro doses em uma mesma ocasião), considerado o padrão de consumo de mais alto risco. Entre esses, 30% fizeram isso duas vezes por mês ou mais no último ano.
"O que importa não é se um ou dois terços bebem, mas como eles bebem. O problema é que, entre os que bebem, muitos bebem de forma abusiva", completa a estudiosa.
Apesar de ser proibido vender bebidas alcoólicas para menores de idade, há pouca fiscalização, e são raros os bares que pedem documento de identidade para jovens. A facilidade de comprar, o preço baixo (o Brasil está entre os países em que a cerveja é mais barata) e a grande tolerância social à bebida são fatores que contribuem para o início precoce do consumo de álcool. "No Brasil, o álcool, além de ser altamente tolerado, é até estimulado; é visto como uma coisa obrigatória em muitas situações", comenta Ilana Pinsky.
"Os adolescentes têm dificuldade de ver a bebida como uma droga, como um problema", diz a psiquiatra Sandra Scivoletto, chefe do Ambulatório de Adolescentes e Drogas da Faculdade de Medicina da USP.
Colega de escola de Rafael, João, 16, tem uma rotina parecida com a dele. Bate cartão no boteco ao lado da escola quase diariamente. Depois de tomar cerveja no bar, ele vai para a casa e dorme. Chega atrasado na escola freqüentemente e está indo tão mal que se já considera praticamente reprovado. "Vou mudar para uma escola mais fácil para não perder o ano", admite.
O caso de João ilustra uma das principais conseqüências do uso abusivo de álcool na adolescência: o baixo desempenho escolar. "O jovem que bebe fica mais lento e com a atenção instável", diz a psiquiatra Ana Cecília Marques, pesquisadora da Unidade de Álcool e Drogas (UNIAD) da Unifesp.
Além disso, a exposição a doenças sexualmente transmissíveis e a acidentes de carros também são agravadas pelo álcool. "Em grande quantidade, o álcool desinibe, diminui a atenção e provoca a perda dos reflexos. O adolescente ainda não tem a compreensão perfeita da realidade, por isso está exposto a muito mais riscos que um adulto diante de uma intoxicação alcoólica", diz a presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas), Analice Gigliotti.
A longo prazo, os efeitos são ainda mais nocivos. "A adolescência é a fase em que o cérebro tem mais condições fisiológicas de receber e processar informações. O excesso de álcool dificulta o processo de aprendizagem. Isso pode resultar num adulto com menos habilidades intelectuais", afirma o toxicologista Anthony Wong, da USP.


25% de motoristas mortos em 2005 eram jovens

Quando tinha 22 anos, Vitor, hoje com 24, entrou com seu carro no meio de uma praça em São Paulo, voltando de uma balada. "Eu estava muito bêbado. Até tinha noção do perigo, mas achava que tinha condições de dirigir", diz o estudante.
Por sorte, o acidente não teve vítimas. A praça estava vazia, e Vitor não se machucou. Depois disso, ele garante que nunca mais pegou o carro bêbado. "Peço para algum amigo sóbrio dirigir ou pego um táxi. Eu poderia ter morrido naquele dia ou, o que é pior, ter matado alguém", observa.
Haroldo, 21, também já correu perigo quando pegou carona com um amigo bêbado. "O cara passou no sinal vermelho, e um ônibus bateu na porta do passageiro, em que eu estava sentado", lembra. Por sorte, novamente nada aconteceu.
Os dois estudantes estão na faixa etária que mais bebe. Segundo o estudo da Unifesp, 63% dos jovens de 18 a 24 anos consomem mais de três doses em um dia. Entre os que têm de 25 a 34 anos, esse índice cai para 55% e continua em queda conforme a idade avança.
Nem todos os casos em que há combinação de álcool e direção têm final feliz como esses. Segundo um estudo da faculdade de medicina da USP, 25% dos condutores de veículos mortos em 2005 em SP tinham entre 18 e 25 anos.
Desses, 54% tinham índice de concentração de álcool no sangue acima do permitido por lei (0,6 gramas de álcool por litro de sangue, o equivalente a duas ou três latas de cerveja).
Os dados, que integram a dissertação de mestrado de Julio Ponce, foram obtidos a partir do cruzamento de informações do IML e da CET.


Por que você bebe?

"A sociedade é muito opressora, e a bebida me alivia"
Pedro, 23

"A bebida facilita a vida. Você fica mais desinibido com pessoas que não conhece, faz o que tem vontade. Fica mais fácil de se aproximar dos caras"
Roberta, 17

"Gosto de cerveja porque é refrescante. Quando quero ficar bêbada, bebo tequila"
Iara, 17

"Bebo por uma questão social, me acostumei a beber e a gostar. Se você não bebe, não faz sentido a um bar, a uma festa. Você fica sem vida social"
Denise, 21

"Porque eu fico mais extrovertido, mais comunicativo. Se eu não bebesse, não iria a bares e teria muito menos opções para me divertir"
Carlos, 15

"É uma experiência de vida importante. É bom tomar um porre de vez em quando porque você faz coisas que não faria normalmente, sai do seu mundinho"
Felipe, 17

No fundo do copo

O consumo abusivo do álcool provoca graves problemas de saúde. A quantidade para uma pessoa se prejudicar varia de acordo com cada organismo. Veja o que o álcool pode fazer com você:

Cérebro - Na adolescência, o uso abusivo pode causar a destruição de neurônios e impedir a realização de sinapses, fundamentais a processos como o de aprendizagem. É nessa fase que o cérebro tem mais condições fisiológicas de armazenar e de processar informações. O álcool causa alteração da memória e perda de reflexos, o que pode contribuir para acidentes de trânsito. Bêbado, o adolescente fica mais vulnerável a relações sexuais sem proteção e se expõe a DSTs. O álcool pode aumentar a pressão arterial e provocar derrame cerebral.

Esôfago - O álcool danifica as células do esôfago, causando uma inflamação, chamada esofagite. Pode causar sensação de queimação e dores quando um alimento for engolido. Em casos graves, provoca hemorragia e vômitos de sangue.

Estômago - O álcool contribui para o desenvolvimento da gastrite, uma inflamação da camada interna do estômago. Quando é muito grave, pode causar úlcera, ferida na parede do estômago que provoca dores fortes. Essas alterações, somadas a deficiências no pâncreas, impedem o órgão de absorver corretamente nutrientes (síndrome de má absorção), o que pode resultar em anemia. Além disso, mais de 80% dos cânceres de boca, laringe, faringe e estômago estão relacionados ao álcool.

Fígado - É o único órgão que metaboliza o álcool no organismo. Quando a pessoa bebe demais, ele é sobrecarregado e suas células ficam inflamadas, provocando a hepatite. A cirrose, conseqüência mais grave da hepatite, que pode ocorrer após dez anos de uso abusivo, provoca a degeneração do órgão. As células são destruídas e viram cicatrizes. Um fígado cirrótico perde a capacidade de metabolizar nutrientes e impede a passagem de sangue e de água pelo órgão, provocando, num estágio grave, a ascite, ou "barriga d'água".

Pâncreas - O pâncreas é responsável pela produção de insulina e de enzimas digestivas. Em excesso, o álcool provoca a inflamação desse órgão, a chamada pancreatite, que pode resultar na destruição das células que produzem insulina (levando a uma diabetes) e das que produzem as enzimas digestivas (levando a uma síndrome de má absorção). Provoca dor abdominal e vômitos.

Coração - O álcool provoca um alargamento das fibras do coração, resultando em uma doença cardíaca que pode provocar até a insuficiência do órgão.

Intestino - Assim como o estômago, o intestino pode desenvolver uma úlcera por conta da inflamação das células ou ainda um câncer, além da síndrome de má absorção.

Músculos - O álcool interfere na absorção de vitaminas do complexo B, importantes na transmissão nervosa entre o nervo e a placa motora. Isso provoca uma atrofia muscular, a chamada polineurite alcoólica. Com isso, os músculos ficam enfraquecidos, mais finos, e o usuário crônico passa a ter dificuldade de andar.

Ossos - O álcool enfraquece os ossos, provocando a osteoporose.

Aparelho reprodutor - O uso crônico do álcool provoca alteração nos vasos sangüíneos de todo o corpo. Nos homens, ele pode ter ação nos vasos do pênis, provocando a impotência. Além disso, pode inibir a produção de hormônios que ajudam a produzir os espermatozóides, causando infertilidade no homens. Mulheres que bebem durante a gravidez podem gerar bebês com síndrome fetal alcoólica, uma alteração genética que provoca deformações físicas e retardo mental.


O álcool e as mulheres
As mulheres são muito mais vulneráveis ao álcool do que os homens. Elas têm mais gordura e menos água no organismo, o que dificulta a metabolização da substância no caso de uma intoxicação de álcool. Além disso, há hormônios femininos que reagem mais rapidamente com o álcool e provocam o aparecimento de doenças mais cedo do que nos homens.

EMPRESÁRIOS REAGEM CONTRA CONCORRÊNCIA DE ESPANHÓIS

Folha de S. Paulo

Grupos nacionais apontam competição desleal e decidem cobrar medidas do governo

Vantagens concedidas pela Espanha para investimentos de suas companhias no exterior são alvo das reclamações de brasileiros

As grandes empresas brasileiras se preparam para tentar conter a invasão de grupos privados espanhóis no país. As companhias nacionais estão reunindo dados para apresentar ao governo um amplo levantamento mostrando que os espanhóis se beneficiam de práticas vistas como desleais, em investimentos realizados fora de seu país de origem.
Nos últimos meses, vários grupos espanhóis adquiriram negócios importantes no Brasil, em diferentes áreas. Os lances que mais chamaram a atenção foram a compra do ABN Amro Real pelo Santander, as cinco das sete concessões de rodovias federais vencidas pela empresa OHL e a compra da dona da TIM pela Telefónica.
O que os empresários brasileiros levantam são as vantagens concedidas pelo governo espanhol para suas empresas comprarem negócios em outros países, principalmente na América Latina. Os estímulos concedidos pelo governo da Espanha chegam a representar 25% do total do investimento.
No trabalho de levantamento de dados, os brasileiros destrincham, entre outras coisas, uma ação movida pela Comissão Européia contra a Espanha por práticas consideradas desleais pelos outros países do bloco.
A disposição do empresariado nacional é de denunciar a ação dos espanhóis ao governo, para que se discuta alguma iniciativa com o objetivo de neutralizar os benefícios da Espanha ou dar isonomia de condições às empresas daqui. "Se chegarmos à conclusão de que a Espanha adota práticas não-aceitas ou indevidas pelas regras internacionais, claro que temos o dever de levar adiante essa história", diz Paulo Godoy, presidente da Abdib (Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base).
Godoy afirma que não se trata de uma iniciativa com o objetivo de coibir a concorrência com os grupos empresariais espanhóis, mas, sim, um levantamento para avaliar se as condições adotadas na Espanha estão de acordo com as regras internacionais de comércio.
Carlo Botarelli, presidente da Triunfo Participações e Investimentos, concessionária de portos, rodovias e empresas de energia elétrica, afirma que, além das instituições de classe, cabe à ANTT (Associação Nacional de Transportes Terrestres), a agência reguladora do setor rodoviário, garantir e zelar pelo princípio da isonomia entre as empresas. Procurada pela Folha, a ANTT disse que não comentaria o assunto.
"Nós, empresas brasileiras, gostaríamos de ter as mesmas garantias e condições que as espanholas", diz Botarelli.
Para Anselmo Lopes Rodrigues, superintendente do grupo agroindustrial Santa Elisa, "é um absurdo as empresas brasileiras terem condições piores do que as estrangeiras".
O fato é que os empresários brasileiros estão preocupados com essa concorrência. A primeira manifestação pública denunciando a preocupação foi dada pelo empresário Fernando Arruda Botelho, da empreiteira Camargo Corrêa, na quinta-feira, na coluna de Mônica Bergamo, na Folha. Segundo ele, os espanhóis "vão arrebentar com os brasileiros".


Espanha incentiva internacionalização

Benefícios a companhias que investem no exterior incluem desde desconto no IR até verbas para viagens de negócios

Empresas brasileiras também reclamam de facilidades dadas a grupos estrangeiros para o acesso a linhas de financiamento do BNDES

Levantamento da consultoria PricewaterhouseCoopers feito a pedido de uma concorrente das espanholas, que pede para não ser identificada, mostra que os incentivos fiscais concedidos às empresas daquele país são extensos. Incluem desde descontos no Imposto de Renda para aquisições de empresas em outros países até doação de verbas de viagens para prospecção de negócios.
"Na verdade, esse é um exemplo claro de comprometimento estratégico do governo, em apoio à internacionalização das empresas espanholas e que traz benefícios ao país de origem", afirma James Wright, professor do MBA executivo internacional da FIA-USP.
Pesquisa feita pelo Gesel (Grupo de Estudos do Setor Elétrico) da UFRJ mostra que, em 2000, as espanholas dominavam 35% das receitas anuais permitidas por leilão de energia. Em 2006, o percentual passou para 77%. Entre os motivos apontados, estão modelos tributários e de endividamento que dão grande vantagem competitiva às espanholas.
Além dos benefícios concedidos pelo governo da Espanha, a Folha apurou que os empresários brasileiros também se queixam de algumas vantagens oferecidas pelo próprio BNDES para estrangeiros e que não são acessíveis a brasileiros.
Para terem acesso aos financiamentos do BNDES, as empresas brasileiras precisam, por exemplo, que os grupos controladores sejam anuentes aos contratos, ou seja, que também se responsabilizem pelo pagamento dos financiamentos feitos pelos bancos. Já os grupos do exterior não se submetem a essa mesma regra.
Com isso, as matrizes das empresas de fora que obtêm verba do BNDES não precisam sequer lançar em seus balanços esses empréstimos, até o pagamento total do financiamento.
De ponto de vista do consumidor, a disputa com os espanhóis tem um lado positivo. "O consumidor claramente é beneficiado quando há mais concorrência", diz Eugênio Foganholo, sócio da consultoria Mixxer e professor do Ibmec-SP. Para vencerem no leilão de concessão de rodovias federais, por exemplo, as espanholas OHL e Acciona apresentaram ofertas com deságio de até 65% no preço do pedágio.

"POSTOS DE SAÚDE PODERIAM EVITAR EVOLUÇÃO DE CASOS DE DENGUE"

ANTÔNIO GOIS


Consultor brasileiro da OMS sobre a doença afirma que população tem de fazer sua parte, mas isso não isenta governos de agir

De cada 100 casos de dengue, 70 poderiam ser resolvidos com um atendimento primário num posto de saúde, por exemplo, 25 com atendimento secundário, e apenas 5 necessitariam de atendimento terciário, com internação imediata.

O número de mortes por dengue hemorrágica no Brasil poderia ser reduzido significativamente se o sistema de saúde estivesse mais preparado para o atendimento primário, realizado principalmente em postos de saúde. Se bem orientados e monitorados desde o primeiro dia em que apresenta sintomas da dengue, poucos pacientes teriam que ser internados e menos de 1% morreriam.
A análise é do clínico infectologista Ivo Castelo Branco, 53, professor do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Ceará e consultor da doença para a OMS (Organização Mundial de Saúde).
Segundo ele, a desestruturação do sistema de saúde, aliada ao despreparo dos médicos para identificar a doença e ao uso de critérios de diagnóstico rígidos pela OMS, explica por que o Brasil apresenta taxas de letalidade por dengue hemorrágica tão superiores às consideradas adequadas pela organização.
Até setembro deste ano, pouco antes de o ministro José Gomes Temporão (Saúde) ter declarado que o país vivia uma nova epidemia da doença, 1.076 casos de dengue hemorrágica haviam sido registrados, dos quais 121 infectados, ou 11% do total, morreram. A taxa adequada, segundo a OMS, é de 1%.
Para Castelo Branco, a população precisa fazer sua parte no combate à doença, mas isso não exime o governo de seu papel de orientar, treinar e, principalmente, investir em medidas que diminuam o risco de contágio. Ele lembra que uma das funções mais importantes do poder público é o investimento em saneamento básico. No Nordeste, por exemplo, o local mais comum de focos do mosquito transmissor da doença são as caixas-d'água. Com um sistema regular de abastecimento de água, lembra, a população não precisaria armazenar, diminuindo o contágio.
O infectologista cita Cuba como modelo de país com bons resultados, mas lembra que a experiência não seria facilmente transportada para o Brasil. "Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem hoje todas as medidas possíveis para combater o mosquito transmissor da doença, ainda assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo de pelo menos dez anos", diz.

FOLHA - Por que a dengue mata mais no Brasil do que o tolerado pela OMS?
IVO CASTELO BRANCO
- Em primeiro lugar, isso tem a ver com os critérios para diagnosticar dengue que a OMS adota, que são muito cartesianos. Muitos casos de dengue hemorrágica não entram nas estatísticas porque não atenderam a um dos critérios definidos pela organização, o que faz com que as taxas de letalidade aumentem.
No Ceará, por exemplo, tivemos em 1994 uma epidemia com letalidade de 50% porque, dos 150 casos suspeitos, apenas 25 atendiam a esses critérios.
Além disso, temos um problema no atendimento primário. De cada 100 casos de dengue, 70 poderiam ser resolvidos com um atendimento primário num posto de saúde, por exemplo, 25 com atendimento secundário, nos quais seria necessária a realização de exames, e apenas 5 necessitariam de atendimento terciário, com internação imediata.
Como no Brasil o atendimento primário não é bem estruturado ou a população não acredita nele, quando acontece uma epidemia, a pessoa procura logo um hospital e o profissional, mesmo que bem preparado, fica sem condições de atender a todos os casos. Acontece que não tem UTI para todo mundo e essa superlotação das emergências faz com que muitos casos que poderiam ter sido evitados com o atendimento primário evoluam para um quadro mais grave por falta de um bom tratamento.
Anualmente, eu trato cerca de 100 casos de dengue hemorrágica. Desses, apenas um ou outro paciente, às vezes nenhum, acaba tendo que ser internado. Se o sistema público fosse bem estruturado, muitos pacientes não estariam hoje superlotando o setor terciário.

FOLHA - Como fazer um bom atendimento?
CASTELO BRANCO
- O grande segredo da dengue é que, quando alguém pega a doença, não se sabe se ela vai evoluir para a forma hemorrágica. Todos os pacientes se queixam inicialmente de febre súbita, dor de cabeça, muita dor nas juntas, um quadro infecioso muito parecido com o de outras doenças. A diferença da dengue hemorrágica para o tipo clássico aparece entre o terceiro e o sexto dia, quando a febre baixa e o paciente tende a ficar melhor.
Porém, se, em vez disso, ele começar a sentir sintomas como muita dor na barriga, desmaios, vômitos, suadeira fria, pressão baixa, falta de ar e tosse constante, é grande a chance de ser dengue hemorrágica.
Se eu atender bem o paciente nessa fase, antes de ele começar a ter hemorragia, consigo dar um bom tratamento e reduzo a letalidade a menos de 1%.

FOLHA - Se a dengue é um problema tão sério no Brasil, por que os médicos não estão preparados para fazer esse diagnóstico?
CASTELO BRANCO
- Primeiro porque se trata de uma doença muito recente aqui. Ela só começou a fazer parte dos currículos médicos a partir de 1994 ou 1995. Eu estou com quase 30 anos de formado e não tive aulas de dengue na universidade. Além disso, eu diria que a literatura sobre a dengue no Brasil ainda é muito importada, baseada nas epidemias em Cuba e na Ásia, que têm peculiaridades que não são encontradas no Brasil. Estive, por exemplo, recentemente na Tailândia e fiquei quase três semanas acompanhando os trabalhos em um hospital de Bancoc.
No Brasil, a maior parte dos pacientes é de adultos, com mais de 15 anos. Lá, no entanto, todo dia chegavam de cinco a dez casos de dengue hemorrágica e praticamente todos eram de crianças. Isso acontece porque a Ásia já convive com os quatro tipos de dengue há 50 anos. A maioria dos adultos ou já teve a doença ou já morreu dela. Por isso, as crianças ficam mais suscetíveis.

FOLHA - A tendência é que isso ocorra também no Brasil?
CASTELO BRANCO
- Sim. Estamos começando a ver aqui mais crianças apresentando sintomas. E, nesse caso, há um fator complicante, pois é mais difícil identificar nelas os sinais de alarme do que num adulto.
Nem toda criança tem maturidade para descrever sintomas como dor intensa na barriga ou tontura, sem falar nas muito pequenas que ainda estão aprendendo a falar. É por isso que muitas chegam aos hospitais já numa fase mais grave da doença. Nossos pediatras precisarão estar preparados para identificar esses sintomas.

FOLHA - Quase todos os governos, sejam eles federal, estaduais ou municipais, repetem o discurso de que, sem ajuda da população, não há como enfrentar a dengue. Não seria uma forma de eles tentarem se eximir de suas responsabilidades?
CASTELO BRANCO
- Antes de tudo, precisamos entender que o combate a dengue não é simples. Mesmo que todos os segmentos da sociedade adotem hoje todas as medidas possíveis para combater o mosquito transmissor da doença [o Aedes aegypti], ainda assim não conseguiríamos controlar a epidemia por um prazo de pelo menos dez anos.
Isso porque é muito difícil controlar a reprodução do mosquito na fase em que a fêmea coloca seu ovo. Ele pode resistir ao inseticida, ao calor e sobreviver por mais de um ano, além de ser transportado facilmente de um local para outro.
Outro complicador do combate à dengue em áreas urbanas é que, mesmo que apenas 1% das casas tenham foco do Aedes aegypti, ainda assim, correremos o risco de epidemia.
No entanto, principalmente no caso do Nordeste, sabemos que os maiores focos do Aedes são os depósitos de armazenamento de água, muito mais do que jarrinhas, vasos ou bromélias. No Nordeste, a gente tem que armazenar água nas casas por causa da distribuição irregular. Se houvesse um sistema regular de distribuição, isso poderia ser evitado.
É correto dizer que não existe um único culpado para a dengue e que a população tem que fazer a sua parte. Mas isso não exime o governo de seu grande papel de ser o orientador das diretrizes, com campanhas de conscientização bem feitas e treinando bem os profissionais que lidarão com o problema, além de investindo em saneamento básico.

FOLHA - Algum país já foi bem sucedido no combate à dengue?
CASTELO BRANCO
- Cuba é muito citado como um caso de sucesso, mas é bom lembrar que se trata de uma ilha com características próprias. É uma população muito bem educada e um país onde um fiscal pode entrar em qualquer residência e revirar a casa. Se ele identificar alguma atitude irresponsável, pode multar o morador. Pode ainda entrar sem pedir licença, com ajuda de um chaveiro.
No Brasil, isso seria obviamente muito mais difícil. É o que ajuda a explicar, por exemplo, por que temos um índice de pendência, ou seja, de casas não visitadas, da ordem de 10%. Geralmente, são pessoas que trabalham o dia todo ou que só dormem naquele endereço nos finais de semana. Isso, sem dúvida, dificulta o combate.
No caso brasileiro, em que as características da epidemia variam muito em cada região, é interessante olhar para algumas experiências que tiveram êxito. Há cidades pequenas, por exemplo, que afixam cartazes de incentivo ao controle da dengue em casas onde não foi encontrado nenhum foco do mosquito transmissor.
Em um pequeno município aqui do Ceará, Pedra Branca, o secretário da Saúde treinou professoras primárias de um bairro com altos níveis de infecção e fez um trabalho com os alunos para que eles examinassem três casas: a deles mesmos e a de dois vizinhos. Após fazer esse trabalho, os alunos recebiam uma ficha para concorrer a uma bicicleta. Em pouco tempo, a prefeitura de lá conseguiu ter um bom diagnóstico dos focos e controlou a doença.

IRRESPONSABILIDADE INTELECTUAL

ALBA ZALUAR

Houve certo consenso entre intelectuais, artistas e estudantes enquanto tratava-se de lutar contra o regime militar pelas idéias expressas em palavras. Havia os que apostaram no barco furado do confronto violento. Foi mal.
Agora, não mais. As idéias expressas em palavras estão sendo usadas por alguns para incitar jovens pobres (das favelas ou das periferias) a entrar na canoa ainda mais furada do crime violento. Estes jovens estão morrendo como moscas e enriquecendo quem quase não aparece nas notícias e nas investigações policiais.
O jovem da periferia não é nem nosso herói revolucionário (precisa ser muito ingênuo ou mal informado para afirmar isso) nem nosso inimigo número um (precisa ser muito preconceituoso ou mal informado para acreditar nisso). São jovens em busca de identidades, de motivos de orgulho masculino e de meios de sobrevivência. Grande número é morto antes de entender porque a canoa virou.
É na região Sudeste, a mais populosa e rica região do território nacional, que as mortes violentas atingem a taxa mais alta entre os jovens do sexo masculino, mantendo um aumento notável, desde 1980, nas faixas etárias de 15 a 19 anos (de 110,7 por cem mil habitantes em 1980 para 170,6 em 1995) e de 20 a 24 anos (de 177,4 para 269).
Também no Brasil são as armas de fogo que fazem o maior estrago. Entre 1980 e 1995 a taxa de homicídios por armas de fogo no país subiu de 10 por 100 mil habitantes para 38,18 entre homens de 15 a 19 anos. E de 21,66 para 63,68 entre homens de 20 a 24 anos.
No Grande Rio, a taxa de mortalidade por armas de fogo subiu de 59 por 100 mil habitantes em 1980 para 184 em 1995 na faixa de idade de 15 a 19 anos. Na faixa dos 20 a 24 anos, aumentou de 111 para 276 -taxa maior do que a encontrada entre os negros norte-americanos da mesma idade. Nada a ver com a taxa de natalidade, que diminui desde os anos 1970.
No entanto, entre 1981 a 1985, a cidade do Rio de Janeiro tinha 13,9% de pobres; entre 1995 e 1999, passou a ter 12,3%, ou seja, diminuiu a proporção de pobres na população total. Jovens favelados e periféricos perecem em contextos de enorme trauma, sofrimento e crueldade enquanto os intelectuais pretensamente corretos moram em locais mais seguros e ainda pagam pela segurança privada que garante seus bens. Faz sentido?
Respeito à lei é processo coletivo de aprendizagem. Demagogia é interesse próprio que alimenta o delírio de poder e virilidade dos jovens mal socializados. Vamos mudar de lemas: castigo bom é castigo justo; respeito à lei é jogo em que todos ganham.

ONIPOTENTES

RUY CASTRO

Mera coincidência. Vários aeroportos que freqüentei nos últimos anos foram brindados dias depois com a presença de um (com perdão pelo oxímoro) cantor de rap chamado Snoop Dogg. Aos 36 anos, Dogg não se limita a ladrar - morde também. Está sempre com uma arma ou droga no bolso ao passar por aeroportos. Ao ser revistado, irrita-se, depreda a Sala Vip, acerta o nariz de três funcionários, vai preso, paga uma fiança de US$ 200 mil e sai livre, até novo fuzuê no aeroporto seguinte.
Outra celebridade, Britney Spears, 26, é famosa por tomar porres cósmicos, quebrar boates, agredir fotógrafos, descer do carro sem calcinha, entrar e sair de clínicas para dependentes, raspar a cabeça, perder a guarda das filhas e atropelar gente na rua e fugir sem prestar socorro. Nunca a ouvi, mas parece que Britney também canta - é até chamada de "princesinha do pop".
E há Amy Winehouse, que, pelo pouco que escutei, sabe cantar, mas não creio que chegue aos 100 anos - ou aos 24. Amy é uma antologia ambulante de birita, cocaína, maconha, heroína e Special K, este um remédio para cavalo. Seu aspecto é terrível. Está sempre machucada, as overdoses são freqüentes e, naturalmente, ela não admite se tratar. Seu organismo já não suporta alimento. Tem 23 anos.
Snoop, Britney e Amy não são "rebeldes" - apenas pessoas doentes. Mas são também à prova de ajuda porque, pelos milhões que representam, se julgam onipotentes. Nas décadas de 40 e 50, a tolerância era menor. Por causa de heroína, Charlie Parker e Billie Holiday ficaram anos proibidos de trabalhar nos clubes de Nova York - quase uma morte profissional. Cumpriram a sentença, mas, falidos e tristes, já não lhes restava muito tempo: Parker morreu em 1955, aos 34 anos; Holiday, em 1959, aos 44.

28 outubro 2007

GOVERNO QUER MICROCRÉDITO NO BOLSA FAMÍLIA

LEANDRA PERES

Programa visa facilitar abertura de contas bancárias simplificadas e garantir acesso a financiamento de baixo valor

Lula quer transformar iniciativa em nova marca do Bolsa Família e dizer que viabiliza a saída de população da pobreza sem ajuda oficial


O governo prepara um programa para abrir contas bancárias simplificadas e garantir acesso ao microcrédito, financiamento de baixo valor destinado à população de baixa renda, para as cerca de 11 milhões de famílias que recebem mensalmente o Bolsa Família.
A divulgação oficial do programa não deve ocorrer este ano, mas a idéia é que o presidente Lula faça pessoalmente o anúncio. O governo quer transformar essa iniciativa numa nova marca do Bolsa Família.
Seria uma segunda fase do programa em que, depois de ampliar o número de beneficiados, o governo agora pudesse dizer que está viabilizando a saída dessas famílias da pobreza e reduzindo ou eliminando a dependência da ajuda oficial.
Para a CEF (Caixa Econômica Federal), a abertura de contas e a oferta de microcrédito para o público do Bolsa Família são vistos como oportunidade de negócios. O banco é contratado pelo governo para realizar o pagamento mensal do benefício, mas o recebimento, feito por meio do cartão magnético, não cria vínculo com o banco.
Na Caixa, o entendimento é que as operações com o público do Bolsa Família traz riscos -vide a experiência do Banco do Brasil com o Banco Popular, que vem gerando prejuízos. Mas, avaliam integrantes da presidência da Caixa, se o banco não investir, "alguém" o fará.
A CEF avalia que esse público, que hoje é mais ou menos cativo da instituição, será assediado por outras com interesse no microcrédito. Uma das ameaças mais diretas é a chegada do Banco Azteca ao Brasil. No México, o banco tem 1.400 agências, mais de 15 milhões de clientes e é especializado em conceder crédito para as famílias mais pobres. A instituição já tem autorização para operar no país e começará pelo Nordeste, onde se concentram os beneficiários do Bolsa Família.
Segundo os dados oficiais, 50,2% dos que recebem do governo estão na região.
O Ministério do Desenvolvimento Social e a Caixa estão trabalhando no projeto, mas não há definição sobre o valor dos empréstimos ou a inclusão de todos os beneficiários.
O discurso social esbarra em dificuldades práticas que já apareceram nas discussões técnicas, como a dificuldade de abrir uma conta bancária para pessoas que não têm inscrição no CPF (Cadastro das Pessoas Físicas). O documento é exigido pelo Banco Central para correntistas do sistema financeiro.
No banco de dados do governo, há 15 milhões de famílias em condições de receber o benefício e 4 milhões sem CPF.
Ainda mais complicado é oferecer crédito a pessoas de baixa escolaridade. O último perfil feito pelo ministério mostra que 1,76 milhão de beneficiários do Bolsa Família são analfabetos (16% das famílias) e 54% têm até a quarta série do ensino fundamental.
O governo avalia que o microcrédito só funciona acompanhado de orientações básicas de como aplicar os recursos e da gerência de pequenos negócios. Seria essencial, portanto, que a CEF tivesse parcerias com órgãos como Sebrae (serviço de apoio à pequenas empresas). A dificuldade seria garantir a oferta da assistência a um universo grande de pessoas.
O governo não tem iniciativa de grande porte de crédito aos beneficiários programa. Há linhas do Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar) para pequenos agricultores, e o Crediamigo, do BNB (Banco do Nordeste).

FRASE

"Roubei mas não fui eu."
(do programa humorístico Show do Tom)

O QUE FUNCIONA NA EDUCAÇÃO: AS LIÇÕES SEGUNDO A MCKINSEY

Da "ECONOMIST"

Para consultoria, escolas precisam obter os melhores professores, extrair o máximo dos docentes e intervir quando os alunos começam a ficar para trás

O governo britânico, diz Sir Michael Barber, antigo assessor do ex-primeiro ministro Tony Blair, mudou quase todos os aspectos da política educacional na Inglaterra e no País de Gales, e em muitos casos mais de uma vez. "As verbas das escolas, a gestão, os padrões curriculares, os sistemas de avaliação, o papel dos governos local e nacional, o alcance e a natureza das agências nacionais, a política de admissão escolar" - pode escolher: tudo isso foi mudado, e em certos casos posteriormente devolvido à forma original.

A única coisa que não mudou foram os resultados. De acordo com a Fundação Nacional de Pesquisa Educacional britânica, não houve (até recentemente) melhora mensurável nos padrões de alfabetização e de domínio da matemática nas escolas básicas - e isso ao longo dos últimos 50 anos.
A Inglaterra e o País de Gales não estão sozinhos. A Austrália quase triplicou seus gastos por aluno, de 1970 para cá. Nenhuma melhora. Nos Estados Unidos, os dispêndios quase dobraram depois de 1980, e os tamanhos das turmas são os menores de todos os tempos. Uma vez mais, resultado algum. Não importa o que se faça, aparentemente, os padrões se recusam a mudar. Parafraseando Woody Allen: quem não faz ensina; quem não consegue ensinar se torna diretor de escola. Certamente há quem deva imaginar por que tanto esforço. Nada parece fazer efeito. Mas é certo que algo deve funcionar.
Existem grandes variações nos padrões educacionais dos países. Elas foram avaliadas e reavaliadas pelo Pisa (Programa de Avaliação Internacional de Estudantes), da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e isso serviu para estabelecer, primeiro, que os países de desempenho mais forte se saem muito melhor do que os piores e, segundo, que os mesmos países lideram essas avaliações, a cada vez que são realizadas: Canadá, Finlândia, Japão, Cingapura, Coréia do Sul.
Essas constatações provocam uma pergunta que deveria ser bastante frutífera: o que os países de maior sucesso têm em comum? Mas encontrar a resposta parece ser tarefa das mais complicadas. Não se trata de maior investimento: Cingapura gasta menos dinheiro por aluno do que a maioria dos demais países. Tampouco de períodos mais longos de estudo: os alunos finlandeses começam as aulas mais tarde, e estudam menos horas, do que os dos demais países ricos.

Outro olhar
Agora, uma organização que vem de fora do setor de educação - a consultoria McKinsey, que assessora empresas e governos- decidiu que audaciosamente iria ao lugar que raros educadores ousaram visitar e faria recomendações estratégicas com base nas constatações do Pisa.
Segundo a empresa (em "How the world's best performing schools systems come out on top" [como os melhores sistemas escolares do mundo chegam ao topo]), as escolas precisam fazer três coisas: obter os melhores professores, extrair o máximo deles e intervir quando os alunos começam a ficar para trás. Isso talvez não pareça exatamente uma recomendação "sem precedentes" (a definição usada por Andreas Schleicher, diretor de pesquisa educacional da OCDE, para a abordagem da McKinsey): as escolas com certeza já devem agir dessa maneira. Mas a verdade é que não o fazem. Se essas idéias fossem realmente levadas a sério, seria possível mudar a educação radicalmente.
O primeiro passo é contratar os melhores. Não resta dúvida de que, como declarou um funcionário do governo sul-coreano, "a qualidade de um sistema educacional não pode superar a qualidade de seus professores".
Estudos feitos no Tennessee e em Dallas mostraram que, se alunos de capacitação média forem entregues a professores que estão entre os 20% mais competentes de sua profissão, terminam se posicionando entre os 10% de estudantes com melhor desempenho; caso os professores que os ensinam venham dos 20% menos competentes, os alunos terminam entre os 10% de pior desempenho.
A qualidade dos professores exerce a maior influência sobre o desempenho dos alunos.
Mas a maioria dos sistemas escolares não se esforça demais para selecionar os melhores. A Nova Comissão sobre a Capacitação da Força de Trabalho dos Estados Unidos, uma organização sem fins lucrativos, diz que as escolas norte-americanas tipicamente recrutam professores que estão no terço mais baixo de desempenho, entre os formandos das universidades.
A cidade de Washington recentemente contratou como diretora-geral de suas escolas públicas uma integrante da organização Teach for America, que identifica os melhores formandos e os contrata para lecionar por dois anos. Tanto a indicação da diretora quanto a organização que ela representa geraram grande controvérsia.

Falta de dinheiro
A predisposição contra os mais capazes surge em parte pela falta de dinheiro (os governos temem que não terão verba para contratá-los) e em parte porque outros objetivos interferem. Quase todos os países ricos vêm tentando reduzir os tamanhos de suas turmas escolares, nos últimos anos. Mas, se não houver outras variações, turmas menores querem dizer mais professores a serem contratados com a mesma verba, o que reduz o salário médio e o status profissional da categoria.
Isso pode explicar o paradoxo de que, depois da educação básica, parece haver pouca ou nenhuma correlação entre o tamanho das turmas e as realizações educacionais.
A McKinsey argumenta que os sistemas de educação que apresentam melhor desempenho mesmo assim conseguem atrair os melhores profissionais. Na Finlândia, todos os novos professores precisam ter mestrado. A Coréia do Sul contrata professores de ensino básico entre os 5% de formandos com melhor desempenho, Cingapura e Hong Kong entre os 30% de melhor desempenho.
E esses países o fazem de maneira surpreendente. Seria possível imaginar que as escolas oferecem o máximo de dinheiro possível para tentar atrair um grande quadro de interessados em formação educacional, o que permitiria selecionar os melhores dentre eles.
Mas não é assim, segundo a McKinsey. Se o dinheiro fosse tão importante, então os países com os melhores salários para os professores - Alemanha, Espanha e Suíça- teriam presumivelmente sistemas de ensino posicionados entre os melhores. E isso não procede. Na prática, os países com melhor desempenho pagam salários não superiores à média.
E eles tampouco tentam atrair um grande quadro de interessados para selecionar entre eles os mais bem sucedidos. Quase que o contrário. Cingapura avalia os candidatos rigorosamente antes de admiti-los aos cursos de formação de professores e aceita apenas o número de candidatos suficiente para cobrir as vagas nos quadros da educação.
A Finlândia também limita a oferta de cursos de treinamento de professores à demanda. Em ambos os países, o ensino é uma profissão de status elevado (porque é altamente competitiva), e os fundos destinados a cada professor em treinamento são generosos (porque o número deles é baixo). A Coréia do Sul demonstra como os dois sistemas produzem resultados diferentes.
Seus professores de ensino básico têm de obter um diploma de graduação em uma de apenas 12 universidades. A admissão requer notas altas; o número de vagas é racionado de acordo com o número de postos de ensino em aberto. Em contraste, os professores de escolas secundárias podem obter seus diplomas em qualquer uma das 350 faculdades do país, e os critérios de seleção são mais frouxos. Isso gera um enorme excedente de professores secundários recentemente qualificados - cerca de 11 por vaga, de acordo com as mais recentes estatísticas. Como resultado, o ensino secundário é uma profissão com menos status na Coréia do Sul, onde todo mundo prefere trabalhar no ensino básico. A lição parece ser a de que a admissão aos sistemas de treinamento de professores precisa ser difícil, e não fácil.

Ensinando os professores
Depois de selecionar pessoal de boa qualidade, a tentação é a de trancá-los nas classes e deixar que eduquem. Por motivos compreensíveis, os professores raramente recebem muito treinamento nas salas de aula em que lecionam (enquanto os médicos, em contraste, treinam muito nos hospitais). Mas os países de maior sucesso no ramo podem fazer muito para superar essa dificuldade.
Cingapura provê cem horas de treinamento aos seus professores a cada ano e aponta professores veteranos para supervisionar o desenvolvimento profissional em cada escola.
No Japão e na Finlândia, grupos de professores visitam as classes de colegas e planejam aulas juntos. Na Finlândia, professores têm uma tarde de folga semanal com esse objetivo.
Em Boston, cidade cujo sistema educacional demonstra um dos melhores ritmos de progresso nos EUA, os cronogramas de aulas são organizados de forma a permitir que os professores das mesmas disciplinas tenham períodos de folga coincidentes, para que possam planejar juntos. Isso ajuda a difundir as melhores idéias.
Como apontou um educador, "quando um professor norte-americano brilhante se aposenta, quase todos os planos de aula e práticas que ele desenvolveu também são aposentados. Quando um professor japonês se aposenta, deixa um legado".
Por fim, os países de maior sucesso são singulares não só no que tange às pessoas que contratam para que as coisas saiam bem mas também com relação àquilo que fazem quando as coisas vão mal.
Nos últimos anos, quase todos os países começaram a dedicar mais atenção aos processos de avaliação, a mais comum maneira de verificar se os padrões estão em queda. A pesquisa da McKinsey é neutra quanto à utilidade do método, apontando que, embora Boston teste todos os alunos anualmente, a Finlândia em larga medida abriu mão de exames nacionais.
De maneira semelhante, escolas na Nova Zelândia e na Inglaterra são testadas a cada três ou quatro anos, e os resultados são divulgados em público, enquanto a Finlândia, líder mundial na educação, não tem processo formal de revisão e mantém sigilo sobre os resultados de suas auditorias informais.
Mas existe um padrão quanto ao que os países fazem quando os alunos e as escolas começam a falhar. Os países de melhor desempenho não hesitam em intervir, e o mais cedo possível. A Finlândia dispõe de mais professores de educação especial encarregados de ensinar os alunos retardatários do que qualquer outro país -em certas escolas, chega a ser um professor em cada sete.
A cada dado ano, um terço dos alunos recebe educação suplementar em sessões individuais. Cingapura oferece aulas adicionais aos 20% de alunos com desempenho mais fraco, e existe a expectativa de que os professores fiquem na escola depois das aulas -ocasionalmente por horas- a fim de ajudar os alunos.
Nada disso é muito complexo. Mas são práticas que contrariam algumas das suposições silenciosas da política educacional. Quando professores, dirigentes de escolas ou até pais são convidados a se expressar sobre a questão, muitas vezes dizem que é impossível obter os melhores professores sem pagar salários altos; que os professores de Cingapura, digamos, têm status elevado devido aos valores confucianos; ou que os estudantes asiáticos são bem comportados e atentos por motivos culturais.
As conclusões da McKinsey parecem mais otimistas: obter bons professores depende de como você os seleciona e treina; lecionar pode se tornar uma carreira para os melhores formandos mesmo que não sejam oferecidos salários milionários; e, com as políticas corretas, as escolas e os alunos não estão condenados ao atraso.

Se o dinheiro fosse tão importante, países com os melhores salários para professores - Alemanha, Espanha e Suíça - teriam presumivelmente sistemas de ensino entre os melhores. E isso não procede. Os países com melhor desempenho pagam salários não superiores à média.

As escolas precisam fazer três coisas: obter os melhores professores; extrair o máximo dos professores; e intervir quando os alunos começam a ficar para trás. Isso talvez não pareça exatamente uma recomendação "sem precedentes". Mas a verdade é que não o fazem.

O ABORTO DE CAETANO, CHICO E NIEMEYER

GILBERTO DIMENSTEIN

O que acontece naquele improvável cenário de excelência educacional mostra o mais terrível aborto

Instalada em cima de uma oficina mecânica numa esquina movimentada da cidade de São Paulo, uma sala de 120 m2, de teto baixo e com pequenas janelas, é o cenário de uma experiência de três anos da FIA (Fundação Instituto de Administração), instituição associada à USP. Aprende-se ali como administrar talentos numa situação adversa - e, especialmente, como recuperar o tempo perdido.
São 27 jovens da periferia, todos de famílias pobres, que vivem para estudar. No longo trajeto de ônibus de volta para casa, a maioria deles aproveita para continuar lendo. A baixa renda familiar, o pouco espaço, a escassa iluminação e o barulho não impedem esses jovens de se transformarem num ponto estatístico fora da curva entre os estudantes das escolas públicas e privadas: todos entram em boas faculdades - 70% deles em cursos públicos.
Estão ainda muito mais distantes do risco das "fábricas de marginais", apontadas, na semana passada, pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, que defendeu o aborto, ao associar mulheres de alta fertilidade em famílias desestruturadas nas comunidades violentas.


Não há nenhum segredo para o sucesso. Além de esforçados e talentosos, eles recebem ajuda de custo, de empresas privadas, para que possam sobreviver enquanto estão naquele misto de quarto ano de ensino médio com cursinho pré-vestibular. A FIA trata de escolher professores motivados e acompanhar o desempenho desses jovens.
Uma vez que entram na faculdade, os estudantes demonstram um desempenho que equivale ou até mesmo supera o de seus colegas das escolas privadas, que são ajudados pela bagagem familiar, pela rica vivência comunitária e pelo acesso a cursos suplementares. Esse fenômeno é medido detalhadamente em números na Unicamp, onde se lançou um critério especial para a admissão de alunos da rede pública.
O que acontece naquela apertada sala em cima da oficina, improvável cenário de excelência educacional, mostra o mais terrível aborto.

Há uma série de escolas privadas da elite paulistana que, por diferentes programas, recebe bolsistas vindos da periferia. Os professores se emocionam quando falam das conquistas daqueles adolescentes e de sua capacidade de superar diversidades.
É o sonho de qualquer educador: alunos talentosos e esforçados, mesmo sem recursos.
Para os bolsistas, já é motivo de comemoração ter aulas todos os dias. Fiz uma enquete com um grupo deles: todos lamentam, entre outras coisas, a falta do professor.

O problema é que todas essas bolsas conseguem ajudar um punhado de alunos - algumas das matrículas das melhores escolas giram em torno de R$ 1.500 mensais, o que representa dez vezes mais do que o custo de um aluno de escola pública.
Estamos longe do "voucher" educacional dos Estados Unidos, que garante a qualquer um a matrícula num colégio particular se a rede pública for ruim. Na próxima semana, haverá um plebiscito em Utah (EUA) para oficializar esse programa, aplicado em diversas cidades.

Por trás da polêmica do "voucher", há uma ansiedade com a perversidade da perda de talentos. Uma pesquisa divulgada na semana passada mostrou que 18% dos estudantes de três escolas municipais de São Paulo apresentam habilidades acima da média. São habilidades que vão além de ser bom aluno em matemática ou em português e incluem as expressões artísticas, a capacidade de liderança ou a criatividade.
Calcule o que significam 18% num universo de 60 milhões de crianças jovens brasileiros e começará a perceber a dimensão da tragédia.

Se virou consenso a afirmação de que o diferencial não só das empresas mas dos países é seu capital humano, a perda de talentos é o mais terrível aborto brasileiro, no qual se eliminam candidatos a Caetano Veloso, Chico Buarque, Adib Jatene, Oscar Niemeyer ou Paulo Autran.
Em seu lugar, é mais provável que nasçam tipos como Marcola. Essa troca faz com que o governador Sérgio Cabral tenha uma dose de razão: a falta de planejamento familiar não é, nem de longe, a principal razão da violência (assim como também não é a droga), mas é uma contribuição na produção das "fábricas de marginais".

PS - Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) casos de sucesso de alunos pobres com altas habilidades, como o de Danilo Furlan, medalha de ouro nas olimpíadas de matemática e física, ou Marco Aurélio Toledo, que saiu de uma escola pública da periferia e, apoiado, tenta agora estudar em Harvard (EUA). Há também uma pesquisa com esses alunos, com bolsas em escolas privadas, sobre como percebem a educação pública.