09 dezembro 2007

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Folha de S. Paulo

A mudança não é feita por um só, diz ex-presidente

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 76, abrandou ontem o tom de suas alfinetadas no sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, para valorizar o que chamou diversas vezes de "avanços obtidos nos últimos anos" por conta da continuidade dos governos.

Em sabatina promovida pela Folha, ele recusou o "carimbo" de "corrupto" como forma de se referir ao petista e elogiou o momento da economia, sem deixar de apontar a importância de seu período no Planalto (1995-2002) no controle da inflação.
FHC afirmou que pode ter havido compra de votos no Congresso para a aprovação da emenda que permitiu sua reeleição e disse que Lula é "conservador" para tentar um 3º mandato.


LULA X FHC
Acho que a gente tem de olhar as coisas num ângulo um pouco menos estigmatizado. Acho que houve mudanças muito profundas no Brasil, que explicam por que foi possível o que era impensável no passado, o que era difícil imaginar. Isso é um dado positivo. E a pergunta implicaria dizer o seguinte: "E vocês [Lula e FHC] chegaram lá e não fizeram nada." Será? Um sai batizado de direita e o outro de corrupto. Eu não acho que é fato, acho que é um carimbo quebrado, e acho que o Lula não é só isso. Nesse período todo não fomos só nós, mas o país, o país mudou muito, é um outro Brasil para permitir que haja liberdade, para que nós chegássemos à Presidência.
Todos os programas sociais que agora estão florescendo foram criados no meu governo, a reforma agrária, quem é que deu impulso? Como vão dizer que governei para os ricos? Isso é luta política. Os bancos ganham mais hoje do que ontem. Nem é verdade que o presidente Lula governa para a classe operária, nem pode, ele governa para o Brasil. Pergunte o que os ricos acham dele. O programa de bolsa foi iniciado no nosso governo, eu acho muito bom. O Bolsa Família é um programa bom, transfere menos renda que o salário mínimo, é positivo, mas tem de ver os limites. As coisas não são feitas por alguém, é uma história.

HERANÇA MALDITA
Ninguém tem copyright do que fez na política, apropriação é um processo natural da política. É uma discussão que interessa à vaidade das pessoas, não olho por esse ângulo. Digo, criticaram tanto para fazer a mesma coisa, então não estava tão mal assim. De certa forma isso me satisfaz. Às vezes, eles exageram, dizem que não fiz nada, herança maldita. Estão esquecendo a maldição da herança, de tanta bênção que receberam.

CRESCIMENTO
A conjuntura mundial era negativa [na minha época], era absolutamente diversa. Agora é absolutamente favorável, não existia a China. Nós estávamos num esforço enorme de estabilização fiscal. É preciso não esquecer que, quando veio a redemocratização, era um momento difícil, tínhamos um Estado que não estava apto a administrar, tínhamos inflação e demandas sociais enormes. Por sorte do Brasil e do Lula, hoje há a possibilidade de a economia florescer. Imagina se ele tivesse de enfrentar aquilo que eu enfrentei, seria pior. Eu tive de enfrentar outros problemas, que eram muito mais difíceis.

DESAFIOS
A situação que [o novo presidente] irá enfrentar é bem diferente da agenda que enfrentei e da que o presidente Lula está enfrentando. Enfrentamos duas coisas: estabilização e tentativa de retomada do crescimento e modernização do Estado com abertura para a área social. Agora há outras questões. A questão da violência é muito grave. Depois, [é preciso] destravar as dificuldades da infra-estrutura da economia brasileira e, o mais importante, cuidar da educação. O presidente não vai conseguir resolver tudo, até porque algumas questões não são do presidente, como a violência, que tem âmbito estadual. Mas acho que chegamos num momento em que, se não for uma questão nacional que comova a sociedade, não se resolve.

FISIOLOGIA
Acho que isso [fisiologia] deriva de muitas coisas, do corporativismo, do patrimonialismo. Acho que a gente nunca conseguiu resolver a questão efetiva do regime republicano. O sistema de votos faz com que a pessoa chegue ao Parlamento sem dever ao eleitor, mas devendo aos canais intermediários. E quando renova o Congresso, renovam as pessoas, não o sistema. Quando cheguei à Presidência, criei um conselho de presidentes de partidos, logo percebi que era inútil porque eles não controlam os partidos. Chamei os líderes dos partidos, mas eles também não controlam o partido, são os canais de transmissão das demandas dos deputados ao Executivo. Então o presidente tem que negociar quase homem a homem.

REFORMA POLÍTICA
Chega um momento em que se diz: "não dá mais". Acho que nós estamos chegando nesse momento na área da corrupção, não dá mais esse tipo de relacionamento entre o Executivo e o Legislativo, não dá mais para o Congresso não ter uma ligação mais presente com a população. Há muitas maneiras de fazer isso. Não precisa ser o voto distrital puro, pode ser o misto, pode ser um distrito menor, mas alguma coisa terá de ser feita para quebrar esse elo fundamental.
Não acredito em salvador da pátria. Acho que essa é uma medida importante, vai levar tempo. Se olhar as histórias das democracias mais maduras hoje, elas também passaram por períodos difíceis e foram se aperfeiçoando. Não dá para resolver tudo em uma só pessoa.

TERCEIRO MANDATO
Eu não acho que o perfil do presidente Lula vá nessa direção, o que não quer dizer que essa direção não seja posta como possibilidade. Nem a sociedade brasileira [tem esse perfil]. A sociedade brasileira tem uma capacidade de organização e de reação muito grande. Então não acho que vai acontecer isso. O fato de o presidente ser forte pode ser utilizado bem de outra maneira, e aí eu lamento ele não ter uma agenda no Congresso. A agenda está ficando limitada à defesa do imposto. Nesse caso, o presidente Lula não exerce a sua força popular em termos de organização de um programa que permita ao país vê-lo e apoiá-lo. Não vou julgar a intenção do Lula [de ter um terceiro mandato], não cabe a mim.

LULA CONSERVADOR
Acho que, na tradição de Lula, estilo de Lula, ele é conservador. Entre uma solução que mude tudo, ele fica com uma que não muda tanto. Nunca vi o Lula indo para extremos. Ele é moderado, conservador. É muito difícil, dada a sociedade brasileira, que ele vá fazer uma saída radical, que vá mudar muita coisa. Não estou falando de intenção dele, não. Ele pode ter as melhores intenções do mundo. Não estou julgando as intenções, posso julgar o estilo de comportamento dele. Ele tem uma história, um partido, e essas coisas pesam. O mais perigoso em um país é que não tenha amarras. Lula mudou muito, mudou sempre e vai mudando, mas ele muda e se amarra, muda e se amarra. Lula não é anti, é muito mais pró. Não é bom ou ruim, depende do momento. Em certos momentos você precisa quebrar. No momento atual do Brasil, não era necessário quebrar. Agora, no futuro, vamos precisar de um presidente que seja mais duro.

CPMF
"Naquela época [governo FHC] precisávamos efetivamente de recursos. Por quê? Havíamos perdido o grande imposto que sustentava o Brasil, que era a inflação. Então estávamos num sufoco, tínhamos de fazer a CPMF. É uma discussão técnica, mas eu nunca achei que fosse um mau imposto, é fácil de cobrar, vale mais para o pobre do que para o rico, isso é verdade. Qual a posição agora do PSDB? O senador Tasso [Jereissati] fez uma proposta logo no início, de reduzir o valor gradativamente, houve várias tentativas de uma atitude racional. O governo foi intransigente, certo de que iria levar tudo pela força. Não conseguiu até agora, mas não abriu nenhum espaço real de negociação com o PSDB. É difícil dizer aos senadores que tentaram e não conseguiram nada, dizer que agora vocês vão capitular porque os governadores precisam disso. Não pode matar o partido dessa maneira.
Suponhamos que caia a CPMF, não sei se vai cair, não estou acompanhando o dia-a-dia, mas suponhamos que caia o imposto ou que não se vote, o que vai acontecer? Em janeiro você negocia novamente. O PSDB não pode ser irresponsável frente ao país, mas o governo também não pode seguir dizendo: não vou negociar nada."

SERRA X AÉCIO
"É natural que as pessoas aspirem [à Presidência]. As pessoas ao redor estão mais encarniçadas que os próprios envolvidos, isso é da vida política. Se você não tem aspiração, é difícil. Se tem uma cisão, se torna dramático. Fora disso, é natural na vida política que haja conflito. Você precisa criar mecanismos de resolução de conflitos. Conflito é da vida humana. Marido e mulher brigam. Depois fazem as pazes e é mais gostoso. Agora eu virei o Lula, estou usando exemplos domésticos (risos).
O PSDB nunca teve uma situação em que fosse preciso fazer uma primária, uma prévia. Se for necessário, vai fazer. O importante é haver uma certa união. Os dados estão aí, e podem mudar. Temos que deixar o espaço aberto. Temos uma situação positiva, temos um excesso de gente competente, que pode ganhar. Quando o partido não tem, só tem um, aí a unidade é feita."

CASO AZEREDO
"Eu cobrei [do PSDB essa questão], eu fui absolutamente claro. Eu acho que o PSDB deveria ter sido mais afirmativo. É o seguinte, está no tribunal [STF], todo mundo sabe que o Eduardo Azeredo é um homem bom, direito, decente, mas, se fez alguma coisa errada, está no tribunal, nós não temos que tapar o sol com a peneira. E se foi errado, que deve ter sido, é condenar. Eu não acho, como o presidente Lula, que disse, "Ah coitado, isso foi só para a campanha". O PSDB pode ter ficado calado, mas ninguém foi lá para defender."

COMPRA DE VOTOS
"A emenda da reeleição foi votada em janeiro de 1997 por uma maioria folgada, as pesquisas de opinião pública eram favoráveis, os editoriais também. Em maio de 2007, apareceu uma gravação, de um deputado do Acre, que, em uma certa altura, alguém disse: "Isso o Sérgio resolve". Atribuiu-se que era o Sérgio Motta. Ele foi lá na Comissão de Justiça e mostrou que não tinha nada a ver com aquilo. O que aconteceu? Houve compra de voto? Provavelmente, provavelmente. Foi feito pelo governo federal? Não foi. Pelo PSDB? Não foi. Por mim? Muito menos.
Vocês se esquecem de que os governos estaduais estavam em jogo, que os governadores queriam a reeleição. Não quero entrar em detalhes. São todos do Acre. E o governo federal não precisava, porque nós tínhamos maioria tranqüila. Quem que é bobo de comprar o que já estava na mão?"

FORA LULA
"O impeachment não é um julgamento para ver se é culpado, é um julgamento político. Eu poderia dizer o seguinte, quando assisti ao Duda Mendonça na televisão dizer que ele recebeu dinheiro no exterior para pagar a campanha, eu disse, a Justiça vai ter de interferir. Efetivamente, quando ocorre isso numa prefeitura, a Justiça tira o prefeito. O PSDB foi à Justiça e reclamou, não aconteceu nada.
Não houve nenhuma implicação direta do presidente Lula e a opinião pública não sustentaria um impeachment, e nós provocaríamos uma divisão no país muito profunda, porque o presidente poderia apelar às massas e dizer: "Olha, manobra da elite e não sei o quê..." A decisão foi política e não havia gás suficiente para isso.
O problema do impeachment é político. Ao não pedir o impeachment, não se está dizendo que ele não tem responsabilidade. Não havia força, e se houvesse, valeria a pena? É a primeira vez que se elege um líder sindical, que tem virtudes, que simboliza muita coisa, acho que não se pode pensar no interesse do partido, tem de se pensar mais amplo, na história.
Eu assisti no Chile, agora estou vendo na Venezuela, eu assisti na Argentina e assisti no Brasil também, no tempo do Getúlio [Vargas]. Politicamente, acho que seria um processo complexo."

CHÁVEZ
"É muito importante o que aconteceu [derrota do Chávez no plebiscito], a Venezuela, que é um país que tem dinamismo, tem petróleo, ampliar suas relações com o Brasil. Fui eu quem fez a ligação da Venezuela com o Brasil, eletricidade, a energia que serve Roraima vem da Venezuela.
O Chávez que eu conheci é do barril de petróleo que custava US$ 15, agora são US$ 100. É muito mais difícil negociar com uma pessoa que tem tanto poder financeiro na mão e que tem uma audácia muito grande. Nunca houve um líder nesse continente com a capacidade de desafiar temas do mundo como o Chávez. O Fidel Castro [ditador de Cuba] se defendia dos EUA, o Chávez ataca.
É importante que o Brasil mantenha relações estreitas com a Venezuela e no Mercosul, desde que ela cumpra as condições. O debate, a meu ver, está equivocado, está politizado. O que nós temos que perguntar é se ele está cumprindo requisitos para entrar no Mercosul. Esse debate não houve.
Eu acho que não. Vamos exigir da Venezuela que ela explicite. É uma negociação, não é uma adesão de coração. Se você tem uma cláusula democrática [no Mercosul], ela não pode ser só no papel. O Brasil não pode se omitir de ser liderança, liderança democrática.
Não acho que [a Venezuela] seja uma ameaça ao Brasil, o que não quer dizer que os militares não vão perceber [se isso acontecer] e até com razão, se equipar, essa coisa toda. Não acho que seja uma coisa gritante. Acho que é uma pena, [Chávez] está jogando muito dinheiro em armamento, e eu não vejo bem para quê.
A política externa exige ter bastante continuidade. Tem que ser nacional. Em alguns pontos, sim, Lula seguiu [minha política externa], em outros, não."

CRISE AÉREA
"Eu não fiz Anac nenhuma. Não consegui, não saiu. O que saiu não foi meu. Essa é do Lula. Eu acho que a melhor forma é você, progressivamente, desmilitarizar certas áreas que são passíveis de desmilitarização, mas com profissionalização. E sem insistir que não pode ter militar. Pode ter, sim, às vezes eles são mais competentes que os civis. Houve erro de operação porque houve avanço de políticos em instituições que não podem ser politizadas."

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