21 dezembro 2007

CUIDADO PÚBLICO

ELISA BRACHER

Não me sinto desrespeitada pelo fato de a nova primeira-dama ter um gosto diverso do meu. Mas não se trata assim uma obra de arte

Em fins de 2002, a pedido de Ruth Cardoso, fiz uma escultura que foi colocada no Palácio da Alvorada. A idéia da então primeira-dama do Brasil era formar um conjunto de obras que desse visibilidade a um setor da produção visual mais preocupado com os espaços públicos e que dificilmente encontra acolhida.
Como o projeto não contava com dotação pública, minha galerista, Raquel Arnaud, cedeu a escultura em comodato - portanto, sem contrapartida em dinheiro governamental.
No início de 2003, o Gabinete de Arte Raquel Arnaud recebeu um telefonema da secretária de dona Marisa, a nova primeira-dama, pedindo que a obra fosse retirada imediatamente do palácio. O gabinete começou a procurar, primeiro em Brasília, algum lugar em que a escultura pudesse ficar, conciliando as dificuldades práticas do retorno a São Paulo com o desejo de mantê-la acessível ao público.
Algum tempo depois, o gabinete recebeu outro telefonema, este dizendo que a partir do mês seguinte teria que pagar o aluguel pelo depósito que guardava a obra. Insisti com Raquel Arnaud que isso era demais.
Uma mudança no pessoal que trabalhava no palácio e uma mudança na equipe da galeria tornaram o processo de retirada ainda mais lento, com erros de parte a parte.
No começo deste ano, a Secretaria da Cultura de São Paulo aceitou a doação da obra, que seria instalada no parque do Trote, na Vila Maria. Na última quinta-feira, a escultura chegou a São Paulo. Seu estado de deterioração era muito grave. Os parafusos que unem as toras, elementos decisivos para a organização do trabalho, foram arrancados com tal violência que chegaram a se partir.
As toras de madeira, pelo contato com a umidade, apodreceram em muitos lugares estruturalmente decisivos. Não foi possível instalar a obra.
Não é a primeira vez que tenho uma escultura retirada de um lugar público. Da primeira vez, no largo do Arouche, houve manifestações públicas contra e a favor da retirada. O DPH decidiu que a obra seria transferida para o Centro Cultural Vergueiro.
Não cabe aqui discutir a propriedade da decisão. O que importa é que foram consideradas as condições de sua conservação e visibilidade.
Parece-me infrutífero atribuir esse desmazelo apenas ao capricho de alguém que, com ou sem razão, se recusa a conviver com uma escultura que o desagrada. Compromissos de governo estão acima de gostos pessoais. E, no mínimo, isso exigiria zelo por parte daqueles que têm por objetivo máximo zelar pelo bem público, obra de arte ou leis.
Em relação ao caso em questão, não importa nem mesmo discutir os méritos ou deméritos da escultura em foco. O fato é que não se trata assim uma obra de arte, goste-se dela ou não, sobretudo quando foi tomada sob a tutela do Estado. Não me sinto desrespeitada pelo fato de a nova primeira-dama ter um gosto diverso do meu. A escultura estava, afinal, em sua casa, ainda que provisória. O que não me parece aceitável é o tratamento que veio a ser dado a um trabalho que, como todo trabalho de arte, traz em si elementos de polêmica e discordância.
E se se tratasse de uma lei? Quais as conseqüências desse desleixo? Cultural, material ou institucional, um bem público supõe uma consideração sem a qual a continuidade legal de um país é posta em xeque.
Quando a arte passa a ser tratada como uma coisa descartável, que, por sua insignificância, não diz respeito à República, me pergunto se não chegamos às raias de um regime para o qual vale só aquilo tristemente livre de qualquer polêmica ou ambigüidade.
As esculturas de grande porte são públicas por natureza e deveriam estar acessíveis a todos. As coleções públicas poderiam ter acervos mais completos, mas há sempre o medo, justificado, de que as obras possam se deteriorar por descuido.
As esculturas cumprem seu papel no momento em que levantam questões importantes sobre os espaços e têm a possibilidade de ser um "embrião de reflexão sobre a natureza do espaço público". Este é facilmente tomado como privado. As pessoas se apropriam desses espaços públicos como se fossem delas.
No caso dessa escultura, a obra era um bem público - o palácio também, embora residência oficial.
De toda maneira, os bens públicos não devem ser destruídos de modo nenhum, muito menos por desleixo.
Mas temo que a destruição dessa obra faça parte de uma lógica nacional, histórica, não apenas deste governo, mas eterna, em que tudo vai se deteriorando: rios, matas, hospitais, escolas etc.: todos bens públicos. Acima de tudo, uma população abandonada.

Nenhum comentário: