14 dezembro 2007

CELULAR, MEU AMOR

ANNA VERONICA MAUTNER

Todos o amam e até o exibem com orgulho. Ao mesmo tempo, como se se tratasse de um garoto mimado e endiabrado, todos nós prometemos discipliná-lo. Em vão. Quem é e donde vem esse "enfant gâté", esse bem-amado, razão de tanto orgulho, mas que não se sujeita a ser burocratizado? Nossos esforços não adiantam -ele escapa sempre. Na sala de aula e durante espetáculos, ele é proibido. Tem hora em que precisa ser calado. O som de sua lamúria atrapalha, se bem que possa ser substituído pelo seu gesto de espernear.
Entrou na vida de todos nós pela porta da frente e ganha, a cada dia, mais competências. Já é capaz de calcular, escrever e substituir o computador captando e-mails, baixando músicas e registrando imagens de nossas vidas. E nem podemos dizer que só falta falar, pois trata-se justamente de um falador. Falo do celular.
Este gracioso intruso vai invadindo nosso cotidiano, resistindo a todo processo disciplinatório. Pois, se perdesse a rebeldia, deixaria de ser ele mesmo. A relação de cada um de nós com o celular é pessoal, intransferível e plena de amor e ódio. Mesmo que alguns queiram eliminá-lo, é difícil resistir a seus apelos. Sonhamos com um controle maior sobre ele do que aquele que temos. Queremos estar conectados e, ao mesmo tempo, queremos isolamento e sossego. Impossível!
Podemos desligá-lo, mas não a sua existência virtual -durante seu aparente sono, tudo é anotado na sua caixa postal. Não é só essa sua virtualidade que nos atrai, muito mais interessante é a sua rebeldia. Mudando de assunto, mas ainda dentro da mesma preocupação com a autonomia, queria falar do que de mais precioso acarinhamos: nosso tempo livre. Livres são as horas de improvisar, de ficar à toa -sem dever e sem culpa. Isso é raro.
Hoje não passeamos: caminhamos, porque faz bem à saúde. Lemos menos por prazer e mais para nos informarmos. Até cuidar do corpo deixou de ser uma precaução médica ou uma atividade prazerosa e passou a ser dever de todo cidadão. Conseguimos enquadrar o que antes era livre. Como agüentar, então, a presença impertinente, real e virtual, do celular? Ele vai invadindo tudo. Surpreende-nos quando funciona e quando não funciona também. Sair sem o celular é garantia de levar um pito. Bateria descarregada depõe contra o usuário. Atender o celular durante conversas ou refeições pega mal com os presentes.
Não atender pega mal com os ausentes. Quando grita, atrapalha os outros; quando só treme, também. Se cala, nos sentimos abandonados; se o desligamos, pode nos dar a sensação de que deixamos de existir. Gostaria de dizer que meu celular é um último reduto não controlado (pena que não é).
No meu cotidiano, eu o sinto indomado. Vai nos criando probleminhas depois de probleminhas, como um garoto endiabrado. Difícil imaginar a vida sem celular. Afinal, a facilidade de acharmos uns aos outros a qualquer momento tornou-se um "must". É um resquício de irreverência nessa nossa vida tão ordenada.
O celular não pediu passagem, como fazem os abre-alas das escolas de samba, nem pede licença para fazer parte do nosso "eu sou". Enquanto tenho celular, existo.

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