A LINHA RETA NÃO SONHA

TOSTÃO

Kaká não é só símbolo de um jogador moderno. Ele integra pequeno grupo de craques que brilharia em todas as épocas

Oscar Niemeyer, poeta do concreto, ensinou-nos que a solidariedade, a generosidade e a leveza, sem perder a coerência, deveriam fazer parte do cotidiano de nossas vidas, e não apenas na época de Natal.
Niemeyer nos fez ainda sonhar com a leveza e as curvas de seu trabalho. "A linha reta não sonha." (Manoel de Barros)
No futebol, é muito importante também saber dar uma curva na bola, fazê-la girar em torno do adversário para chegar ao companheiro. Ou, em uma falta, colocar a bola em curva por cima de uma barreira, fora do alcance do goleiro.
No passado, só os craques sabiam dar uma curva bela e eficiente em uma bola. Hoje, até alguns jogadores medianos fazem isso bem. O que era uma demonstração de habilidade é hoje também de técnica, de treinamento, de repetição. A técnica pode ser aprendida e aprimorada.
Assim como ocorre no vôlei, que é um esporte em que predomina a execução dos fundamentos técnicos, o futebol é cada dia mais dependente da técnica. Na comparação entre jogadores, mais ou menos, do mesmo nível, os menos habilidosos e mais técnicos costumam ser mais eficientes do que os mais habilidosos e menos técnicos.
Quem você queria no seu time: o técnico Jorge Wagner ou o habilidoso Valdivia?
Kaká é o grande exemplo da importância da técnica hoje no futebol. Mesmo sendo habilidoso e criativo, ele se destaca mais pela sua exuberância técnica e física.
O talento, repito pela milésima vez, é a união, a síntese da habilidade, da técnica, da criatividade e das qualidades físicas e emocionais. Na média de suas virtudes, Kaká e Marta são hoje os melhores e mais talentosos jogadores do mundo.
Messi, Ronaldinho e Cristiano Ronaldo possuem ótima técnica, mas se destacam mais pela habilidade e fantasia. Todos são também eficientes. Robinho precisa melhorar muito sua técnica para ser um candidato a melhor do mundo.
Outra importante qualidade no craque, dentro de campo, que não aparece nas estatísticas e que não pode ser medida pela ciência, é a capacidade que ele tem de nos encantar. Da mesma forma, a ciência não consegue medir o amor de duas andorinhas que se acasalam perto da minha varanda.
O crescimento técnico de Kaká coincidiu com a mudança na sua maneira de jogar. Kaká é hoje um segundo atacante, como os antigos e grandes pontas-de-lança da história, que davam passes e faziam gols decisivos.
Para se livrar de um marcador, Kaká não precisa pedalar e fintar com o corpo. Ele toca a bola e vai pegá-la na frente. Simples e prático.
Nesse momento de consagração de Kaká, só me preocupa a confusão que jovens atletas e treinadores possam fazer entre a exuberância técnica e física de um craque como Kaká com a velocidade e a praticidade de um atleta apenas mediano.
Temo que haja uma supervalorização e uma proliferação de Gatusos. Além disso, craques habilidosos e fantasistas, como Ronaldinho, Robinho e Messi, são imprescindíveis ao futebol.
Kaká não é apenas símbolo do jogador moderno e funcional.
Kaká é um craque, que está acima do tempo.