FLÁVIA PIOVESAN
Carece de justificativa a manutenção desses institutos, que se converteram em verdadeiros privilégios pessoais
Sob o escudo do voto secreto, o senador Renan Calheiros foi novamente absolvido da cassação de mandato, por quebra de decoro fundada em graves acusações, pelo plenário do Senado. No julgamento anterior, a blindagem do voto secreto assegurou outro acordo de absolvição. Em ambos casos, o número de senadores que afirmaram ter sido a favor da cassação foi superior ao dos que efetivamente a apoiaram. Se o voto fosse aberto, suscetível ao controle público, diverso teria sido o resultado.
Em 19 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça acolheu a proposta de emenda que estabelece voto aberto em todas deliberações parlamentares. Em novembro, o deputado federal Cunha Lima, processado perante o STF por tentativa de homicídio e beneficiado por 14 anos com a prerrogativa do privilégio de foro, renunciou ao mandato às vésperas do julgamento, "a fim de permitir que o povo da Paraíba o julgasse, sem o foro privilegiado". A manobra do deputado foi consumada por decisão do STF, que, por 7 votos a 4, remeteu o caso à Justiça local, permitindo que a renúncia se traduzisse em escancarado golpe contra a justiça, assegurando impunidade. Protegido pela imunidade parlamentar, a ação penal contra o deputado só foi instaurada em 2002, porque até então os membros do Congresso só poderiam ser processados criminalmente perante o STF com a prévia licença da respectiva Casa (que, no caso, a negou).
Em 2001, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35, que reduziu o alcance da imunidade parlamentar. Não há mais a exigência da prévia autorização da Casa, remanescendo, todavia, seu poder de, até a decisão final, sustar o andamento da ação. O avanço introduzido deveu-se sobretudo aos abusos que acabavam por distorcer por completo a prerrogativa da imunidade processual, convertendo-a em insustentável privilégio. Como lembrança, destaca-se emblemático caso submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em que um deputado estadual, à época no exercício de seu quinto mandato, era o principal acusado do crime de homicídio contra uma jovem estudante, impedindo, por reiteradas vezes, a instauração do processo criminal, pois tinha a maioria na Assembléia local. Lançado à arena internacional, este caso contribuiu para limitar a imunidade processual e permitir justiça.
A imunidade processual, o voto secreto e o foro privilegiado são institutos incompatíveis com o Estado democrático de Direito. Se, em sua origem, fundamentavam-se na idéia de preservação da independência e autonomia do poder Legislativo, livrando-o do arbítrio, das ameaças e das pressões comprometedoras de sua atuação, na ordem contemporânea estes motivos não mais subsistem. Carece de justificativa a manutenção destes institutos, que, de supostas prerrogativas institucionais do passado, convertem-se hoje em verdadeiros privilégios pessoais, contribuindo para a impunidade, com a descrença nas instituições públicas.
O foro privilegiado e a imunidade processual afrontam o ideário republicano e o princípio da igualdade de todos perante a lei. Afrontam ainda a chamada "accountability" e a exigência de responsabilização dos agentes públicos pelas ações que cometerem.
Além disso, a todos são assegurados o contraditório e a ampla defesa, bem como o duplo grau de jurisdição, no marco de um poder Judiciário independente e autônomo. Quanto ao foro privilegiado, adicione-se que os tribunais superiores não têm vocação e estrutura para converterem-se em juízos de instrução penal.
Já o voto secreto viola princípios essenciais ao regime democrático, fomentando um poder submerso, imune a todo e qualquer controle. A opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública, como leciona Bobbio.
O amadurecimento democrático requer transparência, publicidade, "accountability" e controle público, especialmente dos detentores de mandato popular. Demanda um Estado de Direito pautado pela legalidade, em que a lei a todos alcance, de forma genérica, geral e abstrata. O interesse público não pode ser traído por interesses apequenados baseados em conveniências corporativistas e pessoais, sob amparo no desvirtuamento de institutos anacrônicos com o regime democrático. O fim do voto secreto, do foro privilegiado e da imunidade processual parlamentar surge como um imperativo do Estado democrático de Direito.
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