A antropóloga Yvonne Maggie acusa a ministra de incitar o "ódio racial" e afirma que sistema de cotas já mostrou que não serve para o Brasil
MARCOS STRECKER - FOLHA DE S. PAULO
A ministra Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), está incitando o ódio racial.
É essa a opinião da antropóloga Yvonne Maggie, professora titular do departamento de antropologia cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a respeito das declarações da ministra publicadas na terça passada.
Questionada sobre se, no Brasil, também há racismo de negro contra branco, como nos EUA, Matilde Ribeiro disse: "Acho natural [que haja]".
"Não é a primeira vez que a ministra dá esse tipo de declaração", disse Maggie, que tem se destacado como uma das maiores críticas às políticas de ação afirmativa em curso no país.
A antropóloga - autora de "Raça como Retórica" [ed. Civilização Brasileira], com Claudia Barcellos Rezende- organizou no ano passado um manifesto contra o projeto de Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial.
Agora, ela ataca a ação da ministra e diz que a política de cotas, a face mais visível das políticas de ação afirmativa, não tem como objetivo democratizar o acesso ao ensino superior nem produzir eqüidade na sociedade.
"O objetivo é produzir um país dividido racialmente", afirmou na entrevista abaixo.
FOLHA - As declarações da ministra Matilde Ribeiro, de que é natural que exista no Brasil um racismo também de negro contra branco, trazem embutido um sentido de racismo às avessas?YVONNE MAGGIE - São muito graves suas declarações, sobretudo sendo ela uma ministra. Ela deveria representar todos os brasileiros. Na verdade, expressou a opinião de um grupo que vem batalhando pela divisão do Brasil em brancos e negros. Não é a primeira vez que dá essa declaração. Em várias ocasiões já expressou essa mesma opinião, sem grande repercussão porque foi em jornais brasileiros. Dessa vez não, foi na BBC. Ela já havia dito antes que achava natural a reação dos negros contra os brancos.
FOLHA - Isso pode ser chamado de racismo?
MAGGIE - Acho que isso é racismo, sem dúvida nenhuma.
FOLHA - Vários antropólogos defendem que não faz mais sentido falar em raças, mas em etnias, que incluiria os aspectos culturais. A senhora concorda?
MAGGIE - O racismo é um mal que assola a humanidade no mundo contemporâneo e assume várias formas. O Brasil tinha se caracterizado justamente por reprimir esses sentimentos em termos históricos, pelo menos desde a Abolição (1888). Houve uma ênfase, principalmente desde os anos 1920, em incentivar o convívio e a chamada democracia racial, que nada mais era do que um ideal. Toda vez que se fala em raça ou etnia no mundo contemporâneo, o risco de resvalar para o racismo é iminente, não importam as palavras. O problema é você dividir a humanidade em raças ou grupos étnicos. Raça é um conceito que foi abolido da ciência há muito tempo.Mas que, de certa maneira, é restituído pela noção de etnia. A cultura acaba sendo tão naturalizada que passa a ser da raça. Em vez de falar "isso é da raça negra", se diz que "isso é da cultura negra". Dá no mesmo.
FOLHA - Segundo levantamento da Folha, em 9 das 15 instituições superiores que adotam o sistema de reserva de vagas, as cotas não foram preenchidas. A sra. acha que reservas de vagas e políticas de ações afirmativas estão em xeque?
MAGGIE - Quando digo que a ministra faz parte de um grupo, é que há um ou vários grupos dentro do movimento negro que estão interessados em produzir uma sociedade de cisão racial. O que a ministra fez é muito grave. É mais do que racismo, é incitar o ódio racial. E isso está presente também no parecer do Conselho Nacional de Educação, que votou em 2005 as diretrizes curriculares para o ensino das relações étnico-raciais, história da África e da cultura africana no Brasil. É um parecer que usa a palavra "revanche". Os brancos têm de temer a revanche dos negros. Isso é o começo de um longo caminho para a guerra étnica ou racial. E isso não é para nós, agora. É para o futuro, para os nossos netos.
FOLHA - Em relação às políticas de ação afirmativa...
MAGGIE - É tudo muito nebuloso. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro [primeira universidade brasileira de grande porte a adotar o critério de cotas em seu vestibular] não disponibilizou os dados sobre o vestibular dos últimos quatro ou cinco anos, que já traziam dados sobre cotas. Essa é uma política que tem endereço certo. Por que evitar distribuir esses dados? O que estamos vendo é que as vagas não estão sendo preenchidas, por um lado, e as pessoas não estão se classificando como negros para obter esse direito. Essa é uma descoberta muito recente. Muitos dos que entraram nas universidades públicas que adotam o sistema de cotas não aproveitaram essa medida. Não quiseram se inscrever como cotistas. Isso é um sinal de que a sociedade brasileira não está totalmente feliz com isso.
FOLHA - Os negros se inscreveram normalmente no vestibular...
MAGGIE - Muitos, uma parcela muito grande, não quiseram usufruir desse direito das cotas. Na Universidade Estadual do Norte Fluminense isso está se dando e também em muitas outras universidades. Em geral, no país todo, estão sobrando vagas. E isso é criminoso, porque vagas significam dinheiro.
FOLHA - O problema é como a política de cotas está sendo implementada ou é a essência dela que é problemática?
MAGGIE - São duas questões. Uma é essa, de uma política que incita a criação de um país dividido. Porque os brasileiros não se pensam em brancos e negros. E a política de cotas é uma política de Estado que visa a separar brancos de negros, na suposição de que negros sofrem mais, têm mais dificuldades. Até os próprios negros não aceitam isso, porque se sentem discriminados. Muitos nem estão acessando o sistema por meio dessa política. E tem um outro problema. Na verdade, o Brasil precisa investir não no acesso ao ensino superior, mas na conclusão do ensino médio. Apenas 30% da população na faixa etária termina o ensino médio. Portanto, a maioria dos pobres e remediados não teria nem sequer a possibilidade de entrar na universidade. O problema é que não existem candidatos suficientes para entrar na universidade. Como os negros e pardos são os mais pobres, não só não terminaram o segundo grau como muitos não estão nem interessados em ir para a universidade, muito menos para as públicas. O grande programa que fez uma diferença enorme foi o Prouni [Programa Universidade para Todos], porque era uma bolsa para o pagamento de universidades e instituições particulares, que estão mais próximos dos locais de moradia dessas pessoas.
FOLHA - Então não se trata de aperfeiçoar a política de cotas...
MAGGIE - O objetivo da política de cotas não é democratizar o acesso ao ensino superior, não é produzir eqüidade na sociedade brasileira. É produzir um país dividido racialmente. A implementação não está decidida. Há um enorme debate na sociedade brasileira. Em 2001, a delegação brasileira que participou da conferência de Durban [Conferência da ONU contra o Racismo, a Xenofobia e Outras Formas de Intolerância, realizada em 2001, na África do Sul] trouxe como proposta a aplicação de cotas no ensino superior. Mas o Estado brasileiro está discutindo isso no congresso. Algumas universidade e alguns Estados adotaram. Mas todas essas experiências são muito restritas.
FOLHA - A sra. acha que essas políticas estão fracassando de alguma forma...
MAGGIE - A esperança é que elas fracassem antes de produzir o efeito deletério que terão no futuro, se forem implementadas. Esse incitamento ao ódio racial é algo que vem sendo feito e, no dia em que saírem os dados das universidades - se conseguirmos esses dados -, será muito sinistro. Veremos como o governo brasileiro jogou dinheiro fora em nome de uma justiça social que é para um grupo muito restrito. Quem é que vai usufruir disso? Quem vai lucrar com as cotas?
FOLHA - A sra. diz politicamente?
MAGGIE - Mesmo materialmente. Quem é que vai ter vagas reservadas na universidade? É um grupo muito pequeno. São alguns grupos negros, que vão se identificar como negros para poder entrar na universidade. A maior parte do povo brasileiro não se pensa como negra, mas, sim, como misturada e não quer ficar presa a uma classificação rígida.
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