Lya Luft
"Não há mais para onde retroceder, estamos todos ameaçados de morte cada vez que voamos. Não por alguma fatalidade, mas pelaincompetência e fraqueza das autoridades."
Houve um tempo em que viajar de avião era privilégio; depois ficou banal; de momento, é aventura de alto risco. Há meio ano senti pela primeira vez na pele algo da realidade assustadora que começava a se manifestar, e de outra mais grave que nunca foi bem explicada: meu marido e eu levamos 24 horas entre Salvador e Porto Alegre, numa cadeia de desinformação, aflição, mentira, exaustão por parte de funcionários e passageiros. De lá para cá, sabe-se que, por baixo da capa de azares, neblina e chuva, quedas de energia, urubus nas turbinas, cachorros na pista, se movem questões ainda mais sérias, ligadas a hierarquia e disciplina militar. Não tenho nem cacife nem intenção de comentar esse aspecto. Falo dos dissabores do cidadão comum que viaja.
No dia que seria o do apagão geral, chegamos ao aeroporto internacional do Rio, querendo voltar para casa, com aquele desejo vil de que nosso vôo atrasasse "só" uma hora. Logo soubemos que o aparelho ainda nem decolara de Brasília: a demora seria de três horas, talvez. Procuramos refúgio num restaurante do aeroporto, cada um abriu seu notebook, e ficamos administrando o cansaço e a insegurança. Quando descemos até a sala de embarque, continuava o espetáculo dos passageiros e funcionários desnorteados. Uma pergunta pairava no ar: e ninguém faz nada? Ninguém fazia nada além de se lamentar.
No Rio, um grande amigo, comandante aposentado, que foi um dos melhores pilotos deste país, me dizia: "Hoje em dia tenho medo de voar, e espero que minha família voe o mínimo possível. Os controladores esgotados lidam com equipamentos antiquados ou estragados; os pilotos estão no limite da resistência; não existe autoridade competente ou responsável."
Um sério quebra-quebra em lugar de tantas queixas adiantaria? Duvido. Mas confesso meu desejo utópico de que os passageiros do país inteiro fizessem o seu apagão pessoal: até que tudo mude, ninguém viaja.
Pois na sexta feira 30 de março os controladores pararam, o país parou. Nós, sem ainda saber disso, embarcamos, e ficamos mais uma hora inteira fechados no avião. Não é difícil imaginar a tensão generalizada. O avião teria manutenção adequada, controlador e comandante estariam com seus reflexos ótimos, com equipamentos de primeira – como tem de ser porque lidam com vidas, e porque o estado nos deve isso? Lá pelas tantas faz-se ouvir o comandante, mais uma vez pedindo desculpas pelo atraso e pela falta de alguma autoridade que resolvesse o assunto.
Quando enfim anunciou que íamos decolar, ele disse, quase exaltado, que além de tudo o controlador a quem pedira informações lhe respondera "com arrogância, grosseria e ironia."
Se essa é a situação de quem, em terra e no ar, cuida das nossas viagens, ninguém sabe como a tragédia com o avião da Gol ainda não se repetiu. Mas, como disse uma iluminada autoridade federal, "não existe problema na aviação brasileira, é tudo apenas a lei de Murphy."
Aliás, as autoridades dizem coisas estupendas, como: "É preciso ter paciência, sempre que fomos impacientes o país entrou em retrocesso"... Com todo o respeito, não há mais para onde retroceder, estamos todos ameaçados de morte cada vez que voamos. Não por alguma fatalidade, mas pela incompetência, descaso e fraqueza das autoridades. E por algum assunto que se agita na sombra, que nós, simples mortais, não compreendemos. O presidente da República há meio ano exige investigação rigorosa, punição de responsáveis e fim do caos aéreo: pelo visto até agora parece que ninguém levou a sério esse pedido, como se não levasse a sério o próprio presidente. Em vez disso, outro ministro afirma que "em uns dez ou quinze dias teremos um estudo completo da situação". Os cadáveres dos passageiros daquele fatídico vôo da Gol continuam simbolicamente insepultos, clamando por autoridades eficazes e seriíssimas mudanças, para que não haja muitas centenas mais de vítimas dessa situação inimaginável em um país civilizado.
Nos dias após a parada geral, para espanto meu a vida continuou, capenga mas com engrenagens precárias rodando, promessas e acordos vagos, informações idem. Dizem que todos os controladores retomaram o trabalho, aviões voltaram a trafegar, aeroportos menos tumultuados porque, com tantos vôos cancelados, muitos desistiram de viajar. Até quando, e qual a solução?
Reduzindo ao máximo minhas andanças de trabalho, desejo que a gente voe em segurança, chegue são e salvo, não seja humilhado e ofendido em aviões, aeroportos, e em geral – pois somos todos passageiros de uma grande nau de insensatos. Boa viagem!
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