Folha de S. Paulo
Marco Antonio Villa diz que precedente é perigoso, mas que não crê na evolução de uma "crise política" para uma "crise de poder"
Para ele, "jurisprudência" sobre motins que não são punidos pode ser um mau exemplo para outros setores das Forças Armadas
O historiador Marco Antonio Villa, 50, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor de "Jango, um Perfil", disse ontem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma lógica sindicalista para enfrentar o motim dos controladores de vôo na última sexta-feira, o que pode trazer conseqüências "perigosas". Embora possam surgir "crises políticas" pontuais, contudo, Villa não crê numa "crise de poder" que ameace o cargo do presidente. A seguir, os principais trechos da entrevista:
FOLHA - Como o sr. define a atual crise na Aeronáutica?
MARCO ANTONIO VILLA - É um misto de incompetência, irresponsabilidade e descaso, um coquetel. Mostra que o governo não tem compromisso com a eficiência administrativa e nem com o cotidiano das tarefas governamentais. Afinal, esse problema não é de hoje, tem mais de seis meses, e o governo nada fez, infelizmente.
FOLHA - O sr. vê algum paralelo entre o episódio e fatos passados?
VILLA - Em 63, teve a revolta dos sargentos, em Brasília. Depois, em março [64], o episódio dos marinheiros. Algumas semelhanças com o segundo caso. De um lado, a ausência, na capital federal, do Jango [ex-presidente João Goulart] e dos principais ministros, no momento da crise, tal qual ocorreu com Lula. Os marinheiros estavam amotinados, da mesma forma que os controladores. Foi dada ordem de prisão para os marinheiros, assim como, parece, foi dada ordem de prisão para os controladores. Só que os marinheiros foram libertados e percorreram em triunfo as ruas do Rio. Esse foi um dos fatores que agravou a terrível conjuntura que levou ao golpe militar. No episódio atual, também foi dada ordem de prisão, mas o presidente cancelou-a, pelo que saiu nos jornais. A diferença maior é que [em 64] vivíamos na Guerra Fria e numa conjuntura na qual a democracia não estava consolidada no país. Se nós tivéssemos hoje esses dois fatores, certamente o Lula seria ex-presidente. Como estamos num outro momento, em que, apesar dos pesares, os valores da democracia estão pouco a pouco se consolidando, a crise militar se transforma somente numa crise política.
FOLHA - É possível que a atual crise evolua para uma crise de poder?
VILLA - Não, por várias razões. Uma que não vivemos mais momentos de golpes militares, isso é uma página virada, definitivamente, na história do Brasil. Outra que os militares estão absolutamente desmoralizados, não têm hoje o poder que tinham em 64 naquela conjuntura, perderam esse poder. E também porque há uma enorme anestesia. O país está anestesiado. Pode acontecer qualquer coisa, na semana que vem uma coisa mais grave, que eu não sei qual é, e que também não vai resultar em nada. Em suma, o governo está protegido, blindado, porque o país não se assusta com mais nada.
FOLHA - Como comandante das Forças Armadas, o presidente não poderia anistiar quem ele quisesse?
VILLA - Foi a primeira vez que passamos por uma crise dessas desde a Constituição de 88. Acho que pode ser que se crie uma jurisprudência. Se isso ocorrer, acho péssimo. Porque aí qualquer guarnição militar vai se rebelar, o comandante vai punir e os comandados vão exigir que o presidente cancele a punição. Se isso virar jurisprudência, é melhor abolir a hierarquia nas Forças Armadas. Ele [Lula] é comandante supremo das Forças Armadas, mas não pode interferir no cotidiano dos assuntos de uma das forças. O funcionamento das Forças Armadas não é assim. Isso abriu um precedente perigosíssimo.
FOLHA - O sr. vê risco de disseminação em outros setores militares?
VILLA - Nós temos várias questões não resolvidas nas Forças Armadas. Uma é o salário. Acho que agora nós não ficaremos assustados, não causará nenhum assombro, se um grupo de militares soltar um manifesto pedindo aumento de salário e resolver entrar em greve de fome. A solução poderia ter sido encontrada no ano passado, preservando a hierarquia, a estrutura de comando, desde que o governo tivesse um projeto para tratar da questão dos controladores de vôo. Que é uma coisa pequena. O problema é que o governo não tem projeto algum, não sabe o que fazer com as Forças Armadas.
FOLHA - O sr. acha que o governo adota uma lógica sindical no ambiente errado?
VILLA - Nós temos uma República sindicalista no Brasil, e no pior sentido da expressão. Lula sempre teve dificuldade de compreender politicamente o país. Ele sempre o compreendeu pela ótica do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Sempre despolitizou as questões e enfatizou a questão sindical. Quando enfatiza só a questão sindical, cai numa luta "economicista", salarial. Sempre teve enorme dificuldade de transcender o universo do sindicato e compreender o jogo complexo do mundo da política. O exemplo que nós tivemos agora foi justamente isso. Há questões extremamente complexas que envolvem os controladores. O problema não é tratar com o sindicato o atendimento ou não das reivindicações, mas, antes disso, ter um projeto para as Forças Armadas. Mas aí mora um outro problema. O Ministério da Defesa não existe, é uma ficção. Ele ainda não foi criado. O que existe é uma realidade virtual, uma espécie de Second Life [mundo virtual da internet]. Só no Lula tivemos três ministros. E logo logo teremos o quarto.
FOLHA - Onde exatamente o governo errou e o que deveria ter feito?
VILLA - O governo não pode ter tomado conhecimento dos problemas só após o acidente da Gol. Mas, ainda assim, poderia ter agido, em questão de semanas. Resolvido os baixos salários, jornada de trabalho, problemas nos equipamentos. Quer dizer, um governo que tivesse eficiência administrativa e um mínimo de respeito à cidadania. Mas não fez.
FOLHA - E no momento da negociação?
VILLA - Quando houve o movimento, o governo se tornou um refém. Por não ter agido há seis meses. Aí passou a agir como se vivesse uma espécie de Síndrome de Estocolmo [dependência afetiva do seqüestrado]. Aceitou tudo que foi imposto, e não negociado, pelos controladores de vôo. E aí se mostra também a quebra de hierarquia dentro do próprio governo. Neste governo, a confusão, a bagunça, são tão grandes que o ministro do Planejamento vai negociar uma crise militar. Isso seria motivo de piada em qualquer país sério do mundo, mas não num país "macunaímico" como o nosso. Não é o ministro da Defesa, não é o chefe da Casa Civil, não. É o ministro do Planejamento. Daqui a pouco podia ser o ministro da Pesca a negociar com os amotinados.
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