Roberto Pompeu de Toledo
O Ministério da Defesa é ótima invenção; pena que não exista. E mais: um país, dois presidentes
A criação do Ministério da Defesa, pelo governo Fernando Henrique, em 1999, não foi apenas uma boa medida sob o ponto de vista administrativo. Foi, sobretudo, um avanço civilizacional e um ganho estético. Avanço civilizacional porque, ao subordinar os comandantes militares a um ministro civil, o país deu um passo no rumo da prevalência da civilidade, do civilismo, do civismo, e de todas as noções que começam com civ – com origem no latim civitas, cidade, e indicativas da boa convivência humana –, sobre as instituições do estado. E ganho estético porque nos livrou das fotos do ministério em que sobressaía aquela trinca de quepe e japona que, em Nuestra América, sempre evoca o fantasma bufo das juntas militares, ou (fica mais sonoro em espanhol) de las juntas militares. Melhor ainda seria se, uma vez criado, o Ministério da Defesa tivesse dado sinais de que realmente existia. Nunca existiu, e não é de hoje que se sabe disso. Para os distraídos que ainda não se tinham dado conta, está aí a crise do apagão aéreo para comprová-lo.
Desde o desastre do avião da Gol, marco inaugural da crise, ao ministro Waldir Pires só sobrou um papel decorativo. Nestes últimos dias, depois da insubordinação dos controladores aéreos, até o papel decorativo lhe foi tirado. Esqueceram-no num canto, enquanto as coisas eram resolvidas (ou não resolvidas) entre o presidente Lula e o comandante da Aeronáutica, acolitado pelos comandantes das outras forças.
Ao respeitável e cavalheiresco Waldir Pires se tem imputado a culpa pela inoperância do ministério. Ele tem lá sua responsabilidade, mas o centro do problema fica em outro lugar. Os militares ainda não engoliram a interpolação (alguns diriam intromissão) de um civil a encompridar-lhes o caminho de acesso ao presidente e a despojá-los do título de "ministros". Tampouco parecem reconhecer a um paisano autoridade para decidir sobre o assunto das armas. De sua parte, os presidentes da República que se têm sucedido desde a redemocratização mostram-se pouco à vontade, para dizer o mínimo, no trato com os militares. Dirigem-se a eles cheios de dedos. Parecem assombrados pela rica crônica dos golpes, como se ainda vivêssemos nos tempos da Guerra Fria, em que o argumento da ameaça comunista oferecia ao povo de farda esplêndidas oportunidades de tomada do poder (ou toma del poder). Da má vontade dos militares, de um lado, e da tibieza dos presidentes, do outro, surge o impasse que dificulta a implantação a sério do Ministério da Defesa e gera o vazio em que atua o ministro que finge comandá-lo.
Fernando Henrique teve dois ministros da Defesa, e Lula está no terceiro. O único que ousou tentar impor-se aos militares foi o diplomata José Viegas, o primeiro da série na era Lula. No episódio das fotos de um preso falsamente identificado como o jornalista Vladimir Herzog, momentos antes de ser assassinado nos cárceres da ditadura, o então comandante do Exército, Francisco Albuquerque, saiu-se com uma nota em que, retomando o dialeto daquele período, defendeu a atuação do Exército contra "um movimento subversivo" que atuava "a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional". Viegas, de quem a nota evidentemente passara ao largo, insurgiu-se contra ela e exigiu uma retratação. A convivência com o comandante ficou insustentável. Quem caiu? Claro, o ministro.
Os militares, no atual episódio, reclamam – com razão – da quebra de hierarquia que representou a desautorização, por Lula, da ordem de prisão contra os controladores amotinados. Quebra de hierarquia é uma prática que os deixa nervosos como diante de uma cilada de Satanás. Mas não se importam em quebrar a hierarquia quando se trata de passar por cima do ministro da Defesa. Com isso retardam nossa libertação de um passado sombrio e nos obstruem a ascensão ao civilismo, ao civismo, à civilidade, à civilização e a quantos outros civs houver.
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O presidente Lula deu, a bordo do avião a caminho dos Estados Unidos, a ordem de negociar com os controladores de vôo, em vez de prendê-los. Pergunta-se: mas ele não tinha, ao deixar o país, passado a Presidência ao vice José Alencar? Se a havia passado, não presidia mais. Que autoridade possuía, então, para dar a ordem? Aliás, se passara a Presidência ao vice, com que autoridade se apresentou ao presidente Bush, em Washington? O presidente era o que ficara no Brasil. Aquele que chegava aos EUA, uma vez destituído da faixa presidencial, era um cidadão comum. Até se poderia concluir que, ao arvorar-se em presidente, não passava, à letra fria da lei, de um impostor. A menos que se admita a possibilidade legal de duas pessoas exercerem a Presidência, o que é uma excrescência ainda maior do que o país deixar-se representar no exterior por um impostor.
O.k., este arrazoado tem conseqüência prática zero. Mas mostra a comédia que é a cerimônia tupiniquim de passagem do cargo quando o presidente viaja.
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