27 maio 2007

POLÍCIA E BANDIDO

Editorial da Folha de S. Paulo

Cabe à Justiça coibir os eventuais abusos da PF; mas o risco maior não é de um Estado policial, e sim de um sistema mafioso

Abusos, descontroles, excessos, exageros: generalizam-se, nos meios políticos e jurídicos, as críticas à atuação da Polícia Federal durante a Operação Navalha. Estaria exorbitando de suas funções? A acusação é das mais graves, e exige discussão minuciosa da sociedade a cada episódio concreto que a possa fundamentar.

Mas o que no momento parece acima de qualquer discussão, dada a sua evidência, é a presença de exageros, excessos, abusos e descontroles de outro tipo: os que caracterizam a relação de políticos dos mais variados partidos brasileiros com as empreiteiras de obras públicas.

Recaem sobre ninguém menos do que o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, as últimas denúncias de favorecimento. A empreiteira Gautama, que até agora assumia o primeiro plano do noticiário, passa a compartilhá-lo com a Mendes Júnior, de onde provinham, segundo a revista "Veja", mais do que mimos institucionais de fim de ano ao senador peemedebista.

Ainda que conspícuos, como não poderia deixar de ser o de Renan Calheiros, os casos suspeitos e os escândalos anunciados ultrapassam o plano individual. Se, no campo das investigações, é necessário apurar com precisão e sem prejulgamento as responsabilidades de cada político em particular, sobram evidências de que o país se encontra exposto à voracidade de uma corrupção sistêmica, capaz de tornar a ilegalidade, a burla, o roubo e a desfaçatez inerentes ao próprio funcionamento do Estado.

Abusos, excessos, exageros? De parte da Polícia Federal? Talvez. Com certeza, entretanto, de parte de um político como o governador baiano Jaques Wagner. Depois de passear, em companhia da ministra Dilma Rousseff, numa lancha cedida pelo dono da Gautama, declarou ter-se esquecido de quem lhe prestara a gentileza. "Domingo de sol, você passeando, uma cervejinha...", explicou Wagner, com serenidade apolínea, seu momentâneo congraçamento com Gautama e Dionísio.

Longe das águas da baía de Todos os Santos, nítido exagero também se verifica no estilo administrativo do governador Jackson Lago, do Maranhão. Contrapondo-se ao domínio do clã Sarney em seu Estado, o pedetista elegera-se com o lema de que o Maranhão deixaria de ser governado "por uma só família". Cumpriu a promessa. Duas dezenas de membros da sua própria foram contemplados com cargos administrativos, e dois sobrinhos seus se encontram no foco da Operação Navalha.

Casos pitorescos à parte, tudo indica que está em curso uma investida multipartidária no sentido de reduzir o impacto desmoralizador que a operação policial impôs ao sistema político brasileiro. É do conhecimento geral que das empreiteiras se originam doações milionárias para candidatos de praticamente todos os partidos; não surpreende que, ao iniciar suas investigações nessa seara, a Polícia Federal passe a ser objeto de críticas.

Vazamentos de informação, assim como prisões espetaculosas de cidadãos sem antecedentes criminais, podem ser vistos, com razão, como potencial ameaça às liberdades constitucionais. Cabe à Justiça garanti-las, limitando eventuais arbítrios da polícia. A probabilidade de que se instaure no país um Estado policialesco é, entretanto, remota; mais forte, sem dúvida, é a de estarmos diante de um sistema político mafioso -e que dele provenham, com crescente ênfase, resistências à ação policial.

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