André Petry
"Alguém com uma carreira artística há quarenta anos, e um sucesso inigualável,deveria ter ao menos noção da relevância da liberdade de expressão. E Roberto Carlos parece que não entendeu nada"
A cena é repulsiva: o caminhão parou diante do depósito da editora e recolheu 670 caixas, cada uma delas com dezesseis exemplares do livro. Carregando 10.700 exemplares, dirigiu-se para um depósito em Santo André. Ali, os livros poderão ter dois destinos: ou serão reciclados, rendendo cerca de 2,5 toneladas de papel, ou queimados numa fogueira.
Eis, em resumo, o desfecho do caso envolvendo o livro Roberto Carlos em Detalhes, escrito pelo historiador Paulo Cesar Araújo, que foi censurado como resultado do acordo judicial mais escandaloso e esdrúxulo de que se tem notícia. É inacreditável que num país livre, em plena vigência do estado de direito democrático, com uma Constituição que assegura a liberdade de expressão, tenhamos uma fogueira queimando milhares de livros. É grotesco e vergonhoso.
A grande fogueira, no entanto, vai queimar mais do que livros. Vai queimar a biografia mesma de Roberto Carlos e, junto com ela, o respeito que alguns milhares de fãs têm pelo rei – e que se incinerou com sua iniciativa intolerante e burra. É intolerante porque não há nada, nas 504 páginas do livro, que possa ser considerado uma invasão de privacidade em se tratando de uma personalidade pública – cuja privacidade, obviamente, é mais restrita do que a de um cidadão comum. É intolerante porque o rei não se contentou em retirar do livro trechos supostamente ofensivos (veja reportagem na página 120). Não, ele quis censurar o livro todo, todas as 504 páginas, todos os quinze capítulos, tudo. E, por fim, é uma iniciativa burra porque alguém com uma carreira artística há quarenta anos, e um sucesso inigualável, deveria ter ao menos uma noção da relevância da liberdade de expressão – a sua, a dos outros, a de todos. E Roberto Carlos parece que não entendeu nada. Sua estupidez não lhe deixa ver que a violação à liberdade de expressão começa proibindo que se diga algo e, como ensina a história das tiranias, termina exigindo que se diga outro algo. Já pensou exigir que Roberto Carlos grave Se Eu Quiser Falar com Deus, a belíssima canção de Gilberto Gil da qual ele não gosta nem de chegar perto?
A fogueira vai queimar também os dedos da Justiça, na pessoa do juiz Tércio Pires, que, mesmo sem identificar calúnia, mentira ou difamação no livro, abençoou o acordo e assassinou a liberdade de expressão. O estarrecedor é que a censura não decorreu de um ato autoritário, costurado às escondidas da Justiça. Foi selado dentro de um tribunal! Na presença de um juiz! E promotor! Será que um juiz pode promover um acordo que fere um direito constitucional? Criamos a censura legal? A ditadura judiciária?
A burrice de Roberto Carlos e a indigência da Justiça, associadas à covardia da editora Planeta, que deveria ter insistido para fazer soar sua sílaba, são reflexos dos tempos ameaçadores que vivemos. Uma hora são os pequenos ditadores religiosos querendo, autoritariamente, impedir a realização de um debate sobre o aborto. Outra hora são os petistas, do fundo de sua alma totalitária, propondo formas de controlar o noticiário da imprensa em época de eleição.
E, agora, essa. O rei é intolerante e burro. A justiça é indigente. E a vítima somos todos nós.
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