CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS
Um criminoso de "gola branca" e um assassino: por que o povo reage de maneira tão diversa perante esses dois tipos?
As toneladas de informações de baixa qualidade, "repercutidas" dia e noite, sobre a trágica morte da pequena Isabella não permitem aos que desejam preservar o senso crítico senão concluir que o sacrifício do intelecto é o alto preço que pagamos pela facilidade com que as notícias circulam no mundo contemporâneo.
De um lado, está o vergonhoso mercantilismo dos "meios de comunicação", bem mais preocupados em vender o seu "peixe" do que em cumprir o importante dever de informar. De outro, temos a cólera da multidão, ainda ontem tão pacata, que se despe, num segundo, da sua casca de civilidade e clama pelas cabeças dos suspeitos.
Para explicar a vileza dos abutres da imprensa, que contabilizam, sem culpa, os seus lucros sobre o corpo (ainda quente) de Isabella, podemos lançar mão de Adam Smith ou de Marx. Já a fúria incontrolável das massas exige, para ser entendida, que recorramos a Freud.
Se possível, esqueçamos, por um momento, as novelas, as partidas de futebol, as revistas de fofoca, os programas de auditório apelativos, toda a miríade, enfim, de irrelevâncias com que nos "brinda" a mídia onipresente e tentemos pensar um pouco levantando algumas questões.
Por que a multidão não se volta, com a mesma ira, contra os políticos corruptos, os empresários desonestos, os "religiosos" picaretas, os fraudadores impudentes ou até mesmo -tristes tempos!- contra alguns "magníficos" reitores? Por que não se montam "campanas" com banheiros químicos também na frente das suas casas? Por que não se almeja linchar tais criminosos de "mãos limpas" como se quer amiúde fazer com infanticidas, estupradores e pedófilos?
Será que os ditos crimes de "colarinho branco" -"limpos" só no nome- acarretam menor dano à sociedade do que os atos isolados, certamente hediondos, de alguns poucos indivíduos, como pensam não só os leigos, mas também legisladores e juristas?
Não creio.
Um assassino, mesmo "produtivo", só consegue destruir algumas vidas, precisamente as que se colocarem ao alcance da mira. Um criminoso de "gola branca", porém, dependendo do tamanho do "golpe", afetará a vida de milhões. Apenas, ele o fará de maneira lenta, menos cruenta, mais palatável à nossa época digital, esmigalhando os futuros de um monte de Isabellas de uma forma "quase indolor".
Mas, se é assim, por que o povo reage de maneira tão diversa perante esses dois tipos de criminosos? As respostas são muitas. Mencionarei a que julgo a mais relevante e que é também, por isso mesmo, a que menos agrada ao senso comum.
As pessoas, de um modo geral, sentem-se "mais à vontade" com os "criminosos de gravata". Pensamentos como "a carne é fraca", "eles roubam, mas fazem" e, é claro, o famoso "no lugar deles eu faria o mesmo" acabam por criar uma empatia profunda com tais delinqüentes, tornando-os, muitas vezes, merecedores de sincera admiração. Tal se dá especialmente no Brasil, onde a "esperteza do malandro" é louvada em prosa e verso.
Já no caso dos crimes hediondos, custa-nos aceitar que também nós podemos cometê-los. E, a não ser que o indivíduo disponha de um real autoconhecimento, obtido a duras penas pela análise corajosa do seu íntimo, jamais admitirá que sente, dormindo ou acordado, todo tipo de desejos inconfessáveis, o que inclui os impulsos infanticidas, parricidas, sadomasoquistas, pedófilos, homossexuais e tudo o mais que a sociedade costuma, em uma época ou outra, abominar.
Daí que essas pessoas que tanto se apressam em apedrejar não pretendem, ao contrário do que crêem, obter a justa punição para os culpados. Buscam, antes, evitar o encontro doloroso com a face mais horrenda da natureza humana, sem o qual nenhuma lucidez é possível.
Mas, compreende-se... É tão mais agradável seguir inconsciente desse fato, afundando sempre mais na doce mediocridade das novelas, das partidas de futebol, das revistas de fofoca...
Infelizmente para todos nós, as pessoas inconscientes constituem, desde sempre, a grande maioria. Diante disso, fica fácil imaginar o que seria, por exemplo, dos brasileiros se passássemos a ser governados por meio de plebiscitos, num grotesco pesadelo rousseauniano, tal como defendem alguns políticos totalitários que fingem ser democráticos.
"Vox populi, vox Dei?" Definitivamente não. Precisamos, antes, ser mais humildes, reconhecendo que ainda estamos, enquanto espécie, muito longe de falarmos e de agirmos como deuses. Mas, afinal, o que isso importa, se o show tem que continuar?
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