Lya Luft
"Em lugar de nos amargurarmos pela loucura, podridão e injustiça, podemos abrir mais espaço para o bom e o belo,que afinal existem"
Já escrevi e repito que nestes dias adormecemos satisfeitos quando podemos dizer: meu avião atrasou só quatro horas, que sorte. Só roubaram meu carro, não me mataram, então viva o progresso, somos um país civilizado. Eu acho que estamos doentes e confusos. Por exemplo, agora em alguns lugares começa a haver autoridade e liderança positiva: a polícia age com mais rigor, e na luta eventualmente fere ou mata bandidos e assassinos. Nada mais justo. Porque nós os cidadãos comuns nos cansamos de ser caçados pelos marginais feito bichos desprotegidos. Porém, há quem reclame: os policiais deviam ser menos ferozes, deviam ao menos cuidar do lugar onde vão atingir os facínoras: quem sabe um tiro no braço ou no pé? Tive de reler a notícia: estão brincando conosco? Imaginei o pobre policial com revolverzinho velho, mirando no bandidão armado com fuzil de última geração e carrão importado e pedindo: licença, moço, vou dar só um tirinho no seu pé.
O banditismo floresceu por falta de autoridade e ordem, mas receio que agora qualquer rigor seja objeto de clamor dos defensores dos direitos da bandidagem, que deveriam era cuidar das vítimas. Entre outras coisas, fazer votar com máxima urgência uma lei que responsabilizasse por seus crimes jovens malfeitores de 16 anos ou menos, freqüentemente verdadeiros monstros morais.
Pontes caem, obras monumentais desabam, correm anúncios de culpas, desculpas, culpados fictícios. Os verdadeiros causadores se escondem, apontando uns para os outros: foi ele, foi ele! Não foi ninguém, nem foi o descaso: foi o acaso, ora bolas! Como em geral neste país, ninguém vai encontrar responsáveis, ou todos serão absolvidos – quem sabe eleitos deputados ou senadores numa próxima eleição. Saímos do público para o privado, e o espetáculo continua. O mal viceja não apenas nas ruas e no campo, não apenas sitiando nossas casas e comprovando nossa vulnerabilidade, mas na violência pessoal da infâmia, da mentira, da injustiça e do abuso em todas as formas. Talvez estejamos mesmo é muito loucos. Quando não conseguimos entender o que acontece e sentimos medo – seja da maldade humana, seja da precariedade das instituições, seja pelo nosso decorrente desamparo –, o perigo é deixar que a ira ou a descrença nos contaminem.
Se não podemos mudar o mundo, interminável trabalho de formiguinha, resta nos abrir para o que existe e sempre existirá de positivo: os verdadeiros amores, que não se baseiam em vantagens, mas em ternura e respeito; as verdadeiras amizades, que não se contam pelos dias convividos, mas pela certeza de que o outro está sempre ali; as verdadeiras famílias, em que apesar das diferenças imperam a confiança e a alegria. Sempre que alguém quer e realiza o mal do outro, alguma coisa no mundo se desestrutura; toda ação ou palavra perversa, toda injustiça é um crime contra a natureza mais ampla, que nos inclui, a nós, seres humanos vulneráveis e grandiosos, patéticos e dignos – tudo isso por sermos apenas humanos.
A tragédia da humanidade não reside só nas guerras, na corrupção, na destruição do ambiente, enquanto a velha mãe natureza geme e reclama e começa a se mostrar faminta de vidas. Está no cotidiano minúsculo de cada um de nós, que corremos na superfície da verdadeira vida, obcecados por deveres insensatos, corroídos de inveja e desejo de aniquilação, distantes das coisas essenciais – pobres de afeto, despidos de alegria.
Lembro a história da filha adolescente de um amigo que, rejeitada pelo namorado, passou uns dias em profunda tristeza, mas de repente apareceu na sala, perfumada, olhos brilhantes, pronta para sair. O pai interroga: "Ué, filha, voltou com seu namorado?". Resposta de inesquecível sabedoria: "Não, pai, eu vou me vingar sendo feliz".
Talvez seja uma saída. Não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar nossa postura no mundo, o público e o privado. Em lugar de nos amargurarmos pela loucura, podridão e injustiça, podemos abrir mais espaço, ou algum espaço, para o bom e o belo, que afinal existem. Tentar curtir a natureza, saborear a arte, atender os necessitados, preparar crianças e jovens para a vida, cultivar harmonia na família, olhar para dentro de nós mesmos e nos escutar. É um bom começo. Olhar o mar ou o amanhecer, que são de graça e nos dão a sensação de que afinal nossas misérias são apenas misérias e que o grande drama é ter a alma mutilada pela amargura.
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