Reinaldo Azevedo
"A cupidez capitalista faz estações para durar, não para cair. A sede de lucro pode não inventar a penicilina, mas massifica-a. Os bilhões de dólares que a indústria farmacêutica torra em pesquisa visam à acumulação, mas fazem antibióticos. Não estou apelando à dialética: 'Ah, os malvados lucram, mas têm o seu lado bom!'.
Dialética não existe"
Boa parte do noticiário sobre o desabamento da Estação Pinheiros do metrô, em São Paulo, levou-me a convocar o espírito de Monteiro Lobato para conjurar o demônio do atraso que toma conta da vida pública brasileira. Os corpos nem haviam sido retirados dos escombros, e o canhoto do estatismo já escandia sua escatologia: a sede de lucro fizera mais vítimas. A militância antiprivatista que ajudara a eleger, havia pouco, um presidente da República encontrava na cratera o seu altar. Enquanto uns choravam seus desaparecidos, outros celebravam um triunfo intelectual. Os que lamentavam seus mortos tinham de genuinamente seu a dor. Os que pranteavam uma idéia tomavam de empréstimo sete cadáveres para exibi-los como emblemas de seu ódio.
Lobato foi um prodígio. Ainda hoje apanha nas escolas do ensino médio – será? – porque resolveu enroscar com a pintura modernista, numa crítica tão obtusa quanto brilhante. A turma da Semana de 22 caiu de pau no coitado. Só mais tarde foi reabilitado por Oswald de Andrade, que o chamou de "o Gandhi do modernismo". Gandhi? Lobato era bom de briga. Alguns de seus melhores textos estão reunidos em Urupês. Ali ele faz o retrato do Jeca Tatu: "Este funesto parasita da terra é o caboclo, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela, nas penumbras fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se".
O pai de Emília (um tanto descrente dos homens, fez gênios uma boneca e um sabugo) referia-se aos meeiros e posseiros do Vale do Paraíba (SP), a então decadente região de Cidades Mortas, onde fica a sua Taubaté natal. Penso no trecho, e isso me assusta um pouco, como uma espécie de emblema e de signo sempre ativo não só do passado, mas também do futuro. Temo que o Jeca possa não ser apenas uma herança, mas também um destino. Pergunto-me: "Estaria ainda dentro de nós aquele homem das 'penumbras fronteiriças', que resiste à civilização, assim como a Capitu dos olhos de ressaca da Praia da Glória estava na inocente espevitada de Matacavalos?". Não sei. Resisto a pensar que o ódio cotidianamente destilado contra o capitalismo seja ou uma vocação ou um édito da sociologia, herança permanentemente atualizada e da qual não conseguimos nos livrar.
É claro que algum erro aconteceu na estação de Pinheiros, ou a obra não teria ido abaixo. Insurjo-me é contra os supostos motivos apresentados – antes de qualquer perícia, diga-se. Todos eles, não por acaso, são expressões de valores que fizeram e fazem a riqueza das nações, não o contrário. Ditaduras, incluindo a cultural, esta nossa, tentam emprestar sentido ético até à aritmética. Uma empreiteira não pode fazer uma obra pelo valor de custo porque isso corresponde a negar a existência da própria empreiteira, entendem? O lucro não é uma categoria moral inferior ao escambo. É só um outro patamar da civilização.
A cupidez capitalista, cara-pálida, faz estações para durar, não para cair. A sede de lucro pode não inventar a penicilina, mas massifica-a. Os bilhões de dólares que a indústria farmacêutica torra em pesquisa visam, é certo, à acumulação, mas fazem antibióticos. Não pensem que estou apelando à surrada dialética, acostamento dos desvalidos de argumento: "Ah, os malvados lucram, é verdade, mas têm o seu lado bom!". Dialética não existe. Não se trata de haurir o Bem do Mal. Não há nenhuma contradição entre lucrar e civilizar. Essa parceria não é mera correlação, mas relação de causa e efeito. Se alguma trapaça responde por aquela cratera, houve uma falha mais importante do que a de engenharia: houve uma falha do sistema. A estação caiu porque algo do capitalismo, naquele canteiro, não funcionou. A natureza do modelo é a expansão, não a autofagia. Do ponto de vista do sistema, o lucro não foi causa, mas também vítima da tragédia.
Então por que tanto ódio destilado contra o ogro dos nossos sonhos? Houve até cronistas emprestando à cratera babados e brocados de má poesia, lamentando a cidade cruel e autofágica, que não respeita a sua história. Tudo vazado naquele estilo decoroso da nostalgia edênica, que sempre me faz levar a mão ao coldre. Falei acima de éditos sociológicos. Dois clássicos que estudam a formação da sociedade brasileira merecem menção: Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Em poucos livros se pode aprender tanto, acreditem. Não obstante diferenças múltiplas, ambos chegam ao retrato daquilo que somos por meio daquilo que fomos: tratam menos de uma seqüência de eventos, o que seria história corriqueira, do que de uma genealogia do Brasil.
Segundo Buarque de Holanda, aos povos ibéricos, "as ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem". Vai além: para esses povos, "não existe outra forma de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência". Faoro chama o último capítulo de seu livro de "Viagem Redonda", indo do Portugal de dom João I ao Brasil de Getúlio Vargas. E consegue encontrar um traço comum em nada menos de seis (!) séculos de história luso-brasileira: o patrimonialismo, cuja expressão política é o "estamento burocrático". E avalia: "O capitalismo clássico, de caráter puritano e anglo-americano, baseia-se em valores de todo estranhos ao curso de uma estrutura de seiscentos anos".
É certo, para lembrar o poeta Carlos Drummond de Andrade, que muito do queixo de nossos avós sobrou em nosso queixo, mas é preciso cuidado para que a sociologia da formação do Brasil não ilumine o passado nem obscureça o presente como uma sombra de autojustificação e determinismo. O contemporâneo jeca brasileiro não está em nossas "vastas solidões", como escreveu Joaquim Nabuco, mas nas cidades. A repulsa ao capitalismo está menos entranhada na, vá lá, "ignorância do povo" do que na sabedoria mística de boa parte de nossos intelectuais e de nossas camadas médias de letrados. Chamo "sabedoria mística" à crença, que já não deve mais nada aos ibéricos e é agora caudatária de uma ideologia internacionalista e regressiva, de que só o Estado pode nos proteger da sanha molestadora do capital.
O ritual de exorcismo da privatização, das parcerias público-privadas e do lucro, dançado à beira da cratera, não é exclusividade, sei bem, do Brasil. O aquecimento global (também eu quero combatê-lo, juro), por exemplo, parece prenunciar, mundo afora, um novo milenarismo. As palavras de ordem são "mudar o nosso estilo de vida" e "disciplinar o consumo desenfreado do capitalismo". O dito-cujo é tratado como se fosse uma craca que tivesse se grudado ao casco do navio da civilização. Sem ele, parece, estaríamos todos cumprindo um grande destino.
Cada país, sei bem, é estúpido a seu modo. Mas será sempre mais inteligente acusar o mal-estar do capitalismo estando na abastança do que fazê-lo na carência, não acham? O Brasil precisa ser um pouco mais capitalista se quer mesmo odiar o sistema com motivos, se não justos, ao menos suficientes. Em tempo: o rombo das contas públicas deve muito mais à Constituição de 1988 do que ao "rei dom Manuel, com três penas no chapéu".
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