BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
A frustração sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da crença no papel do direito na construção da democracia
A reforma da Justiça está hoje na agenda política do Brasil. O direito e a justiça, para serem exercidos democraticamente, têm de assentar numa cultura democrática, e esta é tanto mais preciosa quanto mais difíceis são as condições em que ela se constrói.
Tais condições são hoje muito difíceis por duas razões: devido à distância que separa os direitos formalmente concedidos das práticas sociais que impunemente os violam; porque as vítimas de tais práticas, longe de se limitarem a chorar na exclusão, cada vez mais reclamam, individual e coletivamente, serem ouvidas e se organizam para resistir à impunidade. A frustração sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da crença no papel do direito na construção da democracia e, em última instância, à desistência da democracia.
O imperativo da reforma judicial assenta em três razões principais. A primeira é o campo dos interesses econômicos, que reclama um sistema judiciário eficiente e rápido, que permita a previsibilidade dos negócios e garanta a salvaguarda dos direitos de propriedade. É nesse campo que se concentra a grande parte das reformas do sistema judiciário por todo o mundo.
A segunda razão tem a ver com a corrupção. Essa questão foi sempre tratada de duas perspectivas: a luta judiciária contra a corrupção; a luta contra a corrupção no Judiciário.
Até agora, na América Latina, quando se falou de corrupção e de Judiciário, falou-se sobretudo da corrupção dentro do Judiciário. Sempre que leva a cabo o combate à corrupção, o Judiciário é posto perante uma situação dilemática: esse combate, se, por um lado, contribui para a maior legitimidade social dos tribunais, por outro, aumenta a controvérsia política à volta deles.
Os tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Foram feitos para julgar os de baixo, as classes populares, que, durante muito tempo, só tiveram contato com o sistema judicial pela via repressiva. A igualdade formal de todos perante a lei nunca impediu que os que estão no poder tenham direitos especiais, imunidades e prerrogativas que, nos casos extremos, configuram um direito à impunidade.
Quando os tribunais começam a julgar para cima, a situação muda. Ocorre a judicialização da política. O combate à corrupção leva a que alguns conflitos políticos sejam resolvidos em tribunal. Só que a judicialização da política conduz à politização do Judiciário, tornando-o mais controverso, mais visível e vulnerável politicamente.
Nos melhores casos, tem vindo a produzir um deslocamento da legitimidade do Estado: do Executivo e do Legislativo para o Judiciário.
Esse movimento leva a que se criem expectativas positivas elevadas a respeito do sistema judiciário, esperando-se que resolva os problemas que o sistema político não consegue resolver. Mas a criação de expectativas exageradas acerca do Judiciário é, ela própria, uma fonte de problemas.
Em geral, o sistema judiciário não corresponde à expectativa e, rapidamente, passa de solução a problema. A terceira razão para a reforma judicial está no impulso democrático dos cidadãos que tomam consciência dos seus direitos. Essa consciência revela que a procura efetiva de direitos é a ponta do iceberg. Para além dela há a procura suprimida.
É a procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados. Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias. Se a procura suprimida for considerada, levará a uma grande transformação do Judiciário.
Mas é preciso termos a noção da exigência que está pela frente. Não fará sentido assacar a culpa toda ao Judiciário se as reformas ficarem aquém dessa exigência.
Como ponto de partida, uma nova concepção do acesso ao direito e à Justiça. Na concepção convencional, busca-se o acesso a algo que já existe e não muda em conseqüência do acesso. Ao contrário, na nova concepção, o acesso irá mudar a Justiça a que se tem acesso.
Os vetores principais dessa transformação são: profundas reformas processuais; nova organização e gestão judiciária; revolução na formação de magistrados desde as faculdades de direito até a formação permanente; novas concepções de independência judicial; uma relação do poder judicial mais transparente com o poder político e a mídia e mais densa com os movimentos e organizações sociais; uma cultura jurídica democrática e não corporativa.
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