11 dezembro 2006

A ARTE DE NÃO LEVAR A NADA

Roberto Pompeu de Toledo

Escândalos de mais de cinco anos
continuam sem desfecho; no Brasil
as coisas não acabam – definham

O processo pelo qual o Ministério Público de São Paulo tenta recuperar o dinheiro alegadamente desviado pelo ex-prefeito Paulo Maluf para contas no exterior teve início em 2001. Fernando Henrique Cardoso era o presidente do Brasil, Fernando de la Rúa o da Argentina e não havia ocorrido ainda o ataque às torres gêmeas de Nova York. De 2002 são o seqüestro e o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. O Brasil era só tetracampeão mundial de futebol. O penta ainda estava por vir. De 2004 é o caso Waldomiro Diniz, o ex-assessor da Casa Civil filmado ao tentar arrancar uns trocados de um operador do jogo do bicho. O papa era João Paulo II e os EUA ainda achavam que iam estabelecer uma "democracia" no Iraque. De 2005 é o escândalo do mensalão. Evo Morales era apenas o líder dos índios da Bolívia e Plutão ainda era considerado um planeta.

O que há de comum nos escândalos brasileiros elencados acima é que nenhum deles encontrou um desfecho. O mais velho – o de Maluf – já completou cinco anos. Presidentes se sucedem mundo afora, muda o papa, até o sistema solar sofre um desfalque – e nada de os escândalos no Brasil avançarem rumo a um final, com as devidas condenações, outras tantas absolvições, esclarecimentos acima de qualquer dúvida e uma conclusão digna desse nome, uma conclusão verdadeiramente conclusiva. O Brasil inventou uma química pela qual os escândalos, depois de estourar, se transmudam em bolhas suspensas no ar, por muitos e muitos anos, até se evaporar.

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Quando o Coelho Branco, titubeante, disse não saber como começar seu depoimento, o Rei de Copas aconselhou: "Comece pelo começo, em seguida prossiga até o fim, e então pare". O conselho, proferido num momento crítico de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, cabe como uma luva aos brasileiros. Uma das características nacionais é não saber começar as coisas no começo, perder-se no meio e, dificilmente, como mostra o sistemático emperramento da máquina de apurar escândalos, chegar a um fim. O antropólogo Roberto DaMatta, que conhece como poucos a alma nacional, já diagnosticou o problema, ao comparar os hábitos em vigor nos Estados Unidos e no Brasil: "... lá (nos EUA) as coisas quase sempre têm um início, um meio e um fim, ao passo que aqui temos uma imensa dificuldade em fechar etapas e acontecimentos".

DaMatta escreveu isso num artigo intitulado "Da incapacidade de concluir". Para exemplificar, citou sua própria experiência como aluno calouro da Universidade Harvard, em 1963. Num dos primeiros dias, chegou às 8h30 para uma aula que começaria às 9 horas. Queria conversar com colegas sobre o curso. Ficou olhando para as paredes, sozinho na sala. Quando faltavam três minutos para as 9 horas, os colegas chegaram todos juntos. Terminada a aula, foram embora todos juntos. "Atônito", escreve DaMatta, "eu, que esperava um evento a ser construído por etapas, vivi a experiência 'calvinista' de um encontro com início, meio e fim – algo iniludivelmente bem marcado."

Se a característica nacional já é a de ter dificuldades de encarar com decisão e objetividade o roteiro a seguir, as coisas pioram para valer no terreno da política. Agora, aos naturais titubeios e desnorteamentos, acrescenta-se a malícia de quem quer protelar para enganar, confundir para melar. Regra geral, para o comum dos brasileiros, as coisas não são para começar no começo. Se a reunião está marcada para as 8 horas, começará às 9 horas. E sem hora para terminar, e muito menos com o compromisso de terminar com algo conclusivo. As reuniões terminam com a marcação de nova reunião.

Se é assim para o comum dos brasileiros, no mundo político é mais assim ainda. Do começo tatibitate, marcado por vacilos, remanchos e escamoteios, um começo sem começo, a regra é avançar para um meio tumultuado, aberto a múltiplas e contraditórias trilhas, recheado de armadilhas, sem método a reger os procedimentos ou, quando há método, sem disposição de obedecer a eles, e com apenas uma frouxa idéia de aonde se quer chegar. É o que ocorre nas CPIs. O Brasil teve uma overdose de CPIs nestes últimos anos. Já se sabe como é: o reinado das sessões que não têm hora para começar nem para acabar, dos inquisidores que não sabem o que inquirir, das pessoas que conversam ou falam ao celular enquanto outras depõem, da montanha de sigilos quebrados que se acumulam até não se saber o que fazer com eles, das testemunhas protegidas pelo direito sagrado e inalienável de mentir.

Neste ano de 2006 outros dois casos graúdos se juntaram à lista: o escândalo das ambulâncias superfaturadas, também conhecido como escândalo dos sanguessugas, e a conexa tentativa de compra, por uma turma de petistas, de um dossiê contra os adversários do PSDB. Neste último caso, continua de pé a tão repetida pergunta: de onde veio o dinheiro? O retrospecto indica que ela ainda estará de pé ao fim do ano que vem. E do outro, e do outro. No Brasil as coisas não acabam. Definham.

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