17 setembro 2006

NO DENSO NEVOEIRO

LYA LUFT *

O momento nacional nos dá a impressão aflitiva de estarmos envolvidos num denso nevoeiro, sem enxergar com clareza, por cima de um atoleiro de perplexidade no qual vamos afundando. Muitos dos que não sabem da missa a metade mas pagam o dinheiro que forra o bolso dos espertos e compra a dignidade dos desprivilegiados seguem seu cotidiano como condenados à forca da alienação. Com formadores de opinião dizendo que ética não importa, que governar ou fazer política é, afinal, coisa pouco higiênica, que partido honesto não vence eleições, mas, "se abrindo as comportas", tudo muda de figura, o jeito de fugir ao desânimo seria mudar de canal, botar fora o jornal logo depois de ler cultura e necrológio e cuidar só da própria vida; dane-se o país. Mas a gente insiste na esperança, vai ver nos jornais: "A política é um terreno pantanoso, a ética é de conveniência. Se o fim é nobre, os fins justificam os meios", afirmou um desses famosos que, só por isso, já formam opinião de muita gente. "O que eu acho inaceitável é roubar. Eu acho que o mensalão é do jogo político, não é roubo (...). Mas sanguessuga é roubo. Deveriam ser fuzilados."
Fuzilados, pode ser um exagero: sanguessugas talvez sejam absolvidos (se julgados) e dos mensaleiros ninguém fala mais. Foram liberados para se candidatar a cargos públicos, muitos estão praticamente reeleitos. Que mundo este nosso. Intelectuais de boa formação, pessoas com preparo suficiente para ser lúcidas, parecem cegas à realidade, arrastando velhas ideologias com cheiro de naftalina, que desmoronaram em outras partes mas aqui persistem. Querem nos convencer de que este país nunca esteve tão bem e até serve de modelo para o resto do mundo. Está quase perfeito em saúde pública, por exemplo, tem uma economia crescente e outras maravilhas. Quando a economia mundial não for mais tão favorável, poderemos ainda alardear isso do Brasil, um dos países que menos crescem no mundo? O casamento infeliz de corrupção com cumplicidade e a resultante crise de autoridade na vida pública (com reflexos em toda a sociedade, inclusive na família) trazem à tona a questão da moralidade. (Não estou usando, de propósito, a palavra ética: a pobre anda humilhada demais.) Não se confunda moralidade com moralismo, que é filho da hipocrisia. Moralidade faz parte da decência humana fundamental. Dispensa teorias, mas é a base de qualquer convívio e ordem social. Embora não necessariamente escrita, está contida também nas leis tão mal cumpridas do país. Todos a conhecem em seus traços mais largos, alguns a praticam.
Moralidade é compostura. É exercer autoridade externa fundamentada em autoridade moral. É fiscalizar rigorosamente o cumprimento das leis sem ser policialesco. É respeitar as regras sem ser uma alma subalterna. Moralidade pode ser difícil num país onde o desregramento impera. Exige grande coragem dizer não quando a tentação (de roubar, de enganar, ou de compactuar com tudo isso) nos assedia de todos os lados, também de cima. Num governo, é o oposto do assistencialismo, que dá alguns trocados aos despossuídos, em lugar de emprego e educação, que lhes devolveriam a dignidade. É lutar pelo bem comum, perseguindo e escancarando a verdade mesmo que contrarie grandes e vários interesses.
Mas, aqui entre nós, de momento a imoralidade tudo contamina como um vírus ativo num corpo frágil. Um conhecido autor de novelas se confessou surpreso porque os telespectadores torcem pelos personagens cafajestes, que dão ibope, e os honrados passaram a ser os "malas". Possivelmente, a inconfiabilidade de pessoas que deveriam estar nos dando apoio nos priva do estímulo para viver segundo alguns valores. Mas onde estão esses valores? Onde estão a justiça e a ordem? Que mundo estamos legando a nossos filhos e netos? Que tipo de vida estamos aceitando? A das cidades comandadas por organizações criminosas, a do campo ameaçado e assaltado, a das ruas inseguras, das casas trancadas, da cultura medíocre e das vidas desperdiçadas? Seremos todos assim, precisamos ser assim, não teremos discernimento nem força suficientes para mudar?
Se o moralismo é detestável, a moralidade nos falta: é bom levar isso muito a sério, e tratar de recuperá-la, urgentemente, talvez com o voto mais lúcido dos nossos anos de democracia – pois o preço de sermos o alegre país da malandragem consentida poderá ser alto demais.

* Lya Luft é escritora e colunista da Revista Veja. Gaúcha, autora de “O Rio do Meio”, “Perdas e Ganhos”, entre outros; no próximo mês, lança “Em Outras Palavras”, onde reúneuma seleção de suas crônicas publicadas na Veja.
Na Folha de Londrina de hoje, há uma entrevista com a escritora.

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